22.06.17
fonte: Lusitanian Express de Luís D.
Lopes, Cabo das Tormentas
Eis o trabalho do Sr. Luís D. Lopes:
João de Lisboa foi um dos grandes pilotos portugueses na época em que viveu, e atendendo às datas e factos conhecidos da sua vida terá seguramente nascido na segunda metade do século XV, muito provavelmente entre 1470 e 1480. Ficou imortalizado na História dos Descobrimentos Portugueses por ser o autor de um livro de Marinharia que continha o célebre Tratado da Agulha de Marear de 1514. A datação do Livro de Marinharia constitui um enorme desafio visto conter mapas cujas datas de publicação são consideravelmente posteriores a 1514.
Existem
bons indícios que terá participado na expedição à costa brasileira, em 1501,
capitaneada por Gonçalo Coelho. A sua passagem por terras brasileiras é quase
uma certeza pois em várias cartas do século XVI se encontra referenciado, no
norte do Brasil, um rio com o seu nome.
Em
1506 João de Lisboa terá partido para o Oriente, não se sabe se pela segunda
vez, na armada de Tristão da Cunha.
Em
data incerta (1513?) foi nomeado piloto-mor de Portugal e participou, na
expedição contra Azamor, comandada pelo duque de Bragança, D. Jaime.
Após
a elaboração do Tratado em 1514, parte novamente para a Índia em 1518, na
armada que transportou o governador Diogo Lopes de Sequeira.
Entre
1521 e 1525 terá feito outras viagens à Índia, tendo sido nomeado piloto
mor da navegação da Índia e mar oceano, com a morte de Gonçalo Álvares
por carta de 12 de Janeiro de 1525. Voltou a embarcar para o Oriente onde
provavelmente faleceu, em 1526, isto pelo facto de o seu cargo ter sido
entregue, em 15 de Novembro desse mesmo ano, a Fernão de Afonso.
A
leitura do “Tratado da Agulha de Marear” de João de Lisboa, incorporado num
documento mais extenso, o Tratado de Marinharia, oferece sérias dificuldades na
compreensão da linguagem técnica utilizada, não esquecendo as dificuldades
resultantes dos erros que foram sendo introduzidos e acumulados por sucessivos
copistas deste Tratado.
A
participação de João de Lisboa na elaboração do Tratado de
Marinharia parece estar mais focada no papel de compilador de diversas
fontes, sendo forte a possibilidade de João de Lisboa ter trabalhado sobre um
conjunto de documentos mais antigos que estariam incompletos, associando o seu
nome apenas ao Tratado da Agulha de Marear.
Sendo
um documento de grande importância e significado, a mais antiga versão que se
dispõe data de meados de Quinhentos quando o tratado é de 1514, o que significa
que existirão diversas cópias entre o original e a cópia mais antiga que
dispomos. A obtenção de um texto tanto quanto possível mais próximo do original
deve-se em grande medida ao extraordinário esforço do Prof. Dr. Luís
Albuquerque, através de comparações entre cópias existentes e a leitura de
outros manuscritos que reproduzem, com variações e alterações, parágrafos ou
capítulos inteiros da obra. Este trabalho terá permitido recuperar capítulos
omissos em cópias mais antigas.
Na
página 26 do Tratado de Marinharia surge a primeira indicação sobre a sua data:
“Aqui
se começa o tratado da agulha de marear achado por João de
Lisboa no ano de 1514 - pelo que se pode saber em qualquer parte que homem
estiver quanto é arredado do meridiano verdadeiro pelo variar das agulhas.
Muito
provavelmente, João de Lisboa, durante o processo de elaboração do seu
Tratado, poderá ter tido acesso a documentos mais antigos e incompletos, pelo
que é muito provável que sejam diversos os inspiradores do texto do tratado,
nomeadamente o piloto Perô Anes e um cosmógrafo alemão conhecido por Mestre
Diogo. A contribuição de Perô Anes no Regimento do Cruzeiro do Sul (incorporado
no Tratado de João de Lisboa) é normalmente considerada como indiscutível.
No
Tratado da Agulha de Marear, João de Lisboa tenta sustentar a (falsa) teoria
segundo a qual as linhas isogónicas teriam uma correspondência directa com os
meridianos terrestres. Segundo esta teoria, a declinação magnética estava
directamente relacionada com a longitude através de uma simples regra de
proporcionalidade de acordo com o desvio para nordeste ou noroeste que as
agulhas apresentavam em relação ao meridiano dos pólos, o meridiano “vero”, a
linha agónica, linha que une todos os lugares onde a declinação magnética é
nula. Na defesa desta teoria, João de Lisboa aborda temas como a Agulha de
Marear, a esfericidade da Terra, não esquecendo os processos astronómicos que
permitiam identificar o Norte Geográfico, destacando-se neste conjunto de
processos o Regimento do Cruzeiro do Sul
Como
já referimos, conhecida a direcção do norte geográfico e se a declinação
magnética local fosse diferente de zero, era possível verificar que a
agulha não “estava fixa” nos pólos, o norte geográfico
não se encontrava na mesma direcção da agulha. Isto significa que as agulhas “noroesteavam”
(desviavam para oeste) ou “nordesteavam” (desviavam para leste) em
relação à flor-de-lis (ferros fora da flor-de-lis) ou em
relação ao norte geográfico (ferros na flor-de-lis).
Recordemos a seguinte regra: se a declinação é leste então o norte
geográfico está para leste do norte magnético, se a declinação for oeste então
o norte geográfico está para oeste do norte magnético.
Afirma
João de Lisboa logo no início do Tratado da Agulha:
““Primeiramente
hás-de saber que as agulhas todas, assim genovezas como flamengas, nordesteam e
noroesteam segundo o lugar onde estão…porém hás de saber que umas [agulhas] fazem
mais afastamento que outras, por serem feitas umas
mais orientais e outras mais ocidentais”
Vejamos
o que João de Lisboa pretende transmitir (para ferros fixos fora da
flor-de-lis):
“……. feitas
umas mais Orientais” (nordesteam)
“……feitas
outras mais Ocidentais” (noroesteam)
João
de Lisboa parece estar-se a referir a agulhas com os ferros ferrados fora da
flor-de-lis quando diz por serem “feitas umas mais orientais e
outras mais ocidentais”, além de as definir como sendo genovesas ou
flamengas, ora sabemos que as agulhas com esta origem utilizavam os ferros
fixos fora da flor-de-lis.
Uma
agulha de ferros ferrados na flor-de-lis noroesteava, em 1500,
cerca de 9º (Leste), se estivesse em Génova. Se viajasse para Lisboa essa mesma
agulha continuaria a noroestear, mas por cerca de 5º (Leste), valor estimado
para a declinação de Lisboa na época.
Fig.
nº26 – Saindo de Génova para Sul
Assim
sendo, se uma embarcação saísse de Génova a navegar por um rumo inicial na rosa
de 180 º (figura nº 26), na realidade o seu rumo verdadeiro seria de 189 º (+
9º Este).
Ao
aproximar-se de Lisboa (figura nº 27), se navegasse pela agulha para norte
(360º) na realidade estava a navegar por 005º (+ 5º Leste).
Fig.
nº27 – Chegando a Lisboa
O
mesmo já não se passa com as agulhas com os ferros ferrados fora da
flor-de-lis. O afastamento que apresentam em qualquer momento é sempre igual ao
valor da correcção que foi aplicada no local de construção e montagem da agulha
(apontando a flor-de-lis na direcção dos pólos nesse local), daí João de Lisboa
afirmar que existem agulhas que “fazem mais afastamento que outras por serem
feitas umas orientais outras ocidentais”.
Repliquemos
então a mesma situação anterior agora para o caso de agulhas com os ferros
ferrados fora da flor-de-lis (agulha genovesa com um factor de
correcção oposto à declinação local que é de 9º leste).
Neste
caso, se uma embarcação saísse de Génova a navegar por um rumo inicial na rosa
de 180 º (figura nº 28), na realidade o seu rumo verdadeiro seria também de
180º, situação que se manteria enquanto a declinação magnética se mantivesse
igual a 9º leste (isto porque o efeito de correcção permanente igual
a -9 graus tinha sido aplicado).
Fig.
nº28 – Saindo de Génova para Sul
Ao
aproximar-se de Lisboa (figura n. 29), se navegasse pela agulha para norte
(360º) na realidade estava a navegar por 356º (+ 5 graus Leste – 9 graus
correcção = - 4 graus).
Fig.
nº29 – Chegando a Lisboa
No
quadro seguinte tentamos representar, numa versão muito simplificada, uma
hipotética viagem de Génova para Lisboa comparando os rumos verdadeiros para
cada um dos dois tipos de agulha.
Nota:
Ferros
na flor-de-lis - Rumo verdadeiro = Rumo da agulha + declinação (+ E, - W)
Ferros
fora da flor-de-lis - Rumo verdadeiro = Rumo da agulha + declinação (+ E, - W)
+ factor de correcção (-9)
Da
comparação do quadro anterior concluímos de imediato o seguinte: a diferença
nos rumos verdadeiros entre as agulhas com ferros na flor-de-lis e as agulhas
com ferros fora da flor-de-lis é exactamente igual (como é evidente) ao factor
de correcção ou ângulo permanente entre os ferros e a flor-de-lis.
A
afirmação de João de Lisboa segundo a qual existem agulhas que “fazem mais
afastamento que outras por serem feitas umas orientais outras ocidentais”
fica assim perfeitamente justificada.
Quando
João de Lisboa fez esta afirmação o fenómeno do noroestear e
do nordestear das agulhas já era perfeitamente conhecido, não
se conheciam as razões para a sua existência mas o fenómeno era conhecido.
Ao contrário das agulhas com os ferros na flor-de-lis, as
que tinham os ferros afastados da flor-de-lis de acordo com a
declinação magnética que se observava no local de construção das mesmas agulhas
ou onde estas eram cevadas, eram orientais ou ocidentais de
acordo com o sinal da correcção (E ou W) implementada. Logo o afastamento observado ao
longo das viagens seria obviamente afectado por esta correcção.
Nas
agulhas com os ferros na flor-de-lis o afastamento era nulo
quando se navegava em zonas de declinação magnética nula, mas nas agulhas com
os ferros fora de flor-de-lis, na mesma situação o afastamento seria
exactamente igual ao factor de correcção.
Fig.
nº30 – Agulha com os ferros fora da flor-de-lis em Génova (ano 1500)
Na
figura nº 30 está representada a agulha com o factor de correcção para
cancelamento da declinação magnética em Génova. Na figura nº 31 está
representada a mesma agulha mas numa zona de declinação magnética nula (linha
agónica). O afastamento observado é de facto igual à correcção
implementada no lugar de construção e montagem da agulha.
Fig.
nº31 – A mesma agulha numa zona de declinação nula
Alguma
razão, ou um somatório de várias razões, terá contribuído para a opção adoptada pelos Portugueses, eventualmente ainda no século
XV, pela utilização de agulhas de marear com os ferros fixos na rosa.
Estamos profundamente convencidos que a generalização da utilização do Sol na
navegação astronómica terá tido um papel preponderante nesta opção dos
construtores portugueses de agulhas de marear.
Vejamos
o que diz o espanhol Alonso de Santa Cruz, famoso cartógrafo espanhol do Século
XVI que visitou Portugal em 1545, na sua obra “Libro de Longitudes” (publicada
em 1555) sobre o facto de os pilotos espanhóis utilizarem agulhas com ferros
ferrados fora da flor-de-lis ao contrário dos pilotos
portugueses que utilizavam agulhas com os ferros ferrados na flor-de-lis.
“
[comparando com os portugueses] lo que no hacen los pilotos [espanhóis] que
navegan el poniente, por llevar los hierros debaxo da la rosa media quarta más
al levante de la flor de lis de las 32 em que está repartida el aguja que es la
diferança que la aguja hace hacia al nordeste de Sevilla”.
Alonso
de Santa Cruz diz que os pilotos espanhóis que navegavam para as Índias
Ocidentais [poniente] com agulhas com ferros ferrados fora da
flor-de-lis, iniciavam as suas viagens (de Sevilha, Huelva, etc.) com a ponta
norte da agulha a apontar [por llevar los hierros debaxo da la rosa] para levante (leste,
oriente, nascente) com um desvio em relação à flor-de-lis (norte do cartão da
rosa-dos-ventos) igual a cerca de 5,625 graus [media quarta más al
levante de la flor de lis de las 32 em que está repartida el aguja].
Este ângulo seria o valor da declinação magnética (5,625 graus Leste) que seria
observado em Sevilha naquela época, por quem montava ou cevava as
agulhas de marear naquela zona.
Na
figura nº 32 tentamos ilustrar esta situação não respeitando a escala face
ao ângulo (meia quarta) para tornar a figura mais legível.
Fig. Nº32 – À saída de Sevilha
Mas
Alonso de Santa Cruz disse mais ainda:
“es que los portugueses traen más verdad y que lo han notado más
curiosamente, porque llevan los hierros cebados debajo da la flor de lis de la
rosa del aguja u asi há lugar de hacerse mejor las consideraciones…”
Alonso
de Santa Cruz basicamente diz que os portugueses, por utilizarem os ferros
ferrados na flor-de-lis, obtinham melhores resultados com a utilização das suas
agulhas, isto em comparação com os marinheiros espanhóis. Em que se baseava o
espanhol para fazer esta afirmação?
Seguidamente
apresentamos uma tabela que tenta representar uma hipotética viagem com a
duração de 30 dias de Sevilha a um porto das Caraíbas em meados do século XVI.
Considerámos a declinação à saída de Sevilha como sendo igual a seis graus
Oeste, e utilizámos os valores estimados para a declinação magnética da época
ao longo da travessia do Atlântico. Os rumos da agulha são absolutamente
hipotéticos, não considerando as normais singraduras dos navios da época, assim
sendo tentámos utilizar valores médios para os rumos. Fizemos a comparação dos
rumos verdadeiros caso tivéssemos optado entre utilizar uma agulha com os
ferros na flor-de-lis ou uma agulha com ferros fora da flor-de-lis (como era o
caso dos navios espanhóis).
Nota:
Ferros na flor-de-lis - Rumo verdadeiro = Rumo da agulha + declinação (+ E,
- W)
Ferros fora da flor-de-lis - Rumo verdadeiro = Rumo da agulha + declinação
(+ E, - W) + factor de correcção (-6)
Como
se pode facilmente observar, após uma fase inicial de menor erro, a agulha com
os ferros fora da flor-de-lis começa a apresentar erros de
grandeza muito superiores aos apresentados pela agulha com os ferros na flor-de-lis,
isto porque houve uma mudança de sinal, ou seja a declinação que era Leste à
saída de Sevilha passou a ser de Oeste a partir de certa altura durante a
travessia do Atlântico. Nos primeiros dias os erros nos rumos acabam por se
anular entre si mas mudando o sinal da declinação então os erros das agulhas
com os ferros fora da flor-de-lis passam a ser muitos mais
significativos.
Como conclusão, podemos afirmar que as agulhas de ferros fora da
flor-de-lis eram muito eficazes enquanto a declinação não variasse ou
variasse pouco quando comparada com a declinação magnética do local de
construção/montagem, o factor de correcção implementado anulava a declinação
magnética, daí resultando a navegação por rumos verdadeiros. No entanto, assim
que a declinação variasse significativamente ou de sinal, os resultados
deterioravam-se rapidamente com consequências bem visíveis para a navegação
estimada.
Em
termos práticos, à saída de Sevilha os pilotos espanhóis verificavam que as
agulhas apontavam correctamente em direcção ao Norte mas, nos seus destinos nas
Caraíbas, as agulhas “afastavam-se” do Norte (noroesteavam) em mais de uma
quarta, o dobro do que se observava nas agulhas com os ferros na flor-de-lis.
Esta
situação era muito visível nas travessias do Atlântico com destino às Caraíbas,
dada a contínua alteração da declinação magnética ao longo dessa travessia, pensamos
que seja esta a razão principal para a afirmação “es que los
portugueses traen más verdad ……… asi há lugar de hacerse mejor las
consideraciones…”.
Tratado da Agulha de Marear de João de Lisboa
Regressemos
ao Tratado da Agulha de Marear no ponto em que João de Lisboa apresenta o
seguinte raciocínio:
“…e
porque os antigos não sentiram esta variação, andavam mudando os
ferros das agulhas fora da flor de liz, para que naqueles meridianos onde as
cevavam fossem fixas nos pólos do mundo; e por esta razão achamos nas cartas
todas as costas falsas por uma quarta e por duas”.
Esta
afirmação de João de Lisboa é composta por várias componentes. Identifica a
existência de uma variação, fala das agulhas com os ferros fora da flor-de-lis
e identifica-as como causadoras de erros na qualidade da cartografia da época.
No
capítulo VII do Tratado da Agulha de Marear, “Regra para saberes cevar a
tua agulha de marear”, destacamos a seguinte afirmação:
“saberei
que para cevar a agulha perfeitamente, conforme aos padrões de Portugal,
há-de ter os ferros da rosa no meio da flor-de-lis, e não afastados dele coisa
alguma, como tem algumas que se fazem em Flandres, que não são certas…..”
É
interessante a observação que o João de Lisboa faz sobre a existência de “padrões
de Portugal” em relação aos ferros da rosa, facto confirmado em absoluto pelo
espanhol Alonso de Santa Cruz quando afirma “lo que no hacen los
pilotos [espanhóis]”.
Variação
A variação aqui
identificada por João de Lisboa é descrita também pelo mesmo desta forma:
“…se
forem do meridiano vero [suposto meridiano onde a declinação
magnética seria zero] para o oriente fazem conhecimento para
nordeste tanto quanto vos dele afastais seguindo do meridiano para o ocidente
fazem conhecimento para noroeste… a isto se chama noroestear e nordestear”.
Esta
afirmação contém o suporte fundamental da (falsa) teoria de João de Lisboa
segundo a qual a longitude estaria directamente relacionada com os desvios que
as agulhas sofriam em relação ao norte geográfico (pólos fixos). Ora,
segundo João de Lisboa, os antigos não sentiram esta
variação, continuando a utilizar agulhas de marear com ferros fora da
flor-de-lis.
João
de Lisboa parece dar uma indicação que o conhecimento do fenómeno do noroestear e nordestear das
agulhas esteve directamente relacionado com a ideia que então surgiu em
Portugal, de ferrar os ferros de forma a estes ficarem coincidentes com a
flor-de-lis.
Para João de Lisboa, as agulhas com os ferros fora da
flor-de-lis invalidavam a utilização da sua (falsa) teoria sobre o
cálculo da longitude.
As
agulhas com os ferros fora da flor-de-lis cancelavam o efeito
da declinação local quando era efectuado o cevar das agulhas, originando a
navegação por rumos verdadeiros enquanto a declinação magnética se mantivesse
constante. Com a variação da declinação magnética com o local e com a data,
o noroestear e nordestear das
agulhas também se detectava, mas os rumos verdadeiros estavam afectados pela
correcção inicial (umas mais ocidentais, outras mais orientais) que era
efectuada na operação de construção e montagem da agulha (a flor-de-lis ficava
a apontar para o norte geográfico), pelo que os resultados da navegação
estimada dos pilotos eram forçosamente diferentes.
Nas
agulhas de ferros fixos ou ferrados na flor-de-lis, o noroestear e nordestear era
em relação à flor-de-lis, e segundo João de Lisboa era possível através de
leitura directa destes desvios calcular a longitude. Para João de
Lisboa, com a utilização de agulhas com os ferros ferrados na flor-de-lis, o
cálculo da longitude era simples e directo, bastava medir a variação local
apresentada pela agulha.
Para
João de Lisboa a conclusão era simples e óbvia:
Nas
agulhas de ferros fixos ou ferrados na flor-de-lis, após a operação de cevar,
se a agulha noroesteasse ou nordesteasse em
relação aos pólos fixos, então a longitude onde se encontrava a
embarcação estava proporcionalmente afastada do meridiano Vero, se pelo
contrário a agulha estivesse fixa nos pólos então a embarcação estava no meridiano
Vero. Esta regra mantinha-se ao longo do tempo em que se utilizava a agulha na
navegação da embarcação, até nova operação de cevar.
Nas
agulhas com os ferros fora da flor-de-lis, a rosa-dos-ventos
era orientada de forma que a flor-de-lis apontava em direcção ao norte
geográfico com um ângulo face à agulha que respeitava o desvio (declinação)
observado localmente no local de construção e montagem da agulha (ou onde os
ferros eram magnetizados), o cálculo da longitude ficava comprometido.
Costas Falsas
Voltaremos
a este assunto mais adiante neste trabalho mas gostaríamos de abordar este tema
utilizando o que João de Lisboa diz no capítulo I do Tratado.
“e
em a flor de lis se hão de pôr os ferros sem tomar de nordeste nem de noroeste;
porque costumavam alguns, como dito é, fora da flor de liz por uma quarta ou
duas ou mais, segundo era fora do meridiano fixo”
João
de Lisboa identifica agulhas de marear cujos ferros chegavam a estar ferrados
fora da flor-de-lis em ângulos superiores às duas quartas. Esta e outras
observações irão ser alvo de um estudo mais detalhado.
Concluímos,
dizendo que no último quartel do século XV, em relação aos Descobrimentos
Portugueses e às agulhas de marear, parece ter existido uma sequência de
eventos que podemos resumir da seguinte forma:
detecção
de que as agulhas noroesteavam e nordesteavam com
a navegação em longitude, nomeadamente durante as navegações efectuadas no
Atlântico Norte pelos marinheiros portugueses;
(falsa)
percepção que a longitude estaria proporcionalmente relacionada com o noroestear e nordestear; e,
utilização
generalizada da agulhas com os ferros ferrados na flor-de-lis de forma a evitar
as deficiências das agulhas com os ferros fora da flor-de-lis.
13.06.19
Na segunda metade do Século XV, já era evidente para os navegadores que o norte das agulhas de marear e o norte geográfico não eram coincidentes na maior parte dos casos. A identificação do momento da culminação do Sol, condição fundamental para o cálculo da latitude, permitiu evidenciar de forma clara este facto. A culminação teria que se verificar a norte ou a sul do local de observação, e isso não se verificava. Mais tarde, os navegadores da época começaram sistematicamente a medir a diferença entre os dois pólos, obtendo desta forma o valor da declinação magnética local (sem que conhecessem a sua existência).
No
Tratado da Agulha de Marear, Capítulo VIII - Que declara a causa e
noroestear a nordestear das agulhas, João de Lisboa escreve o
seguinte:
" Convém
saber: o mundo é redondo, como ele mesmo se mostra e por muitas experiências é
sabido, e os pólos sobre que estes céus se movem são dois, pólos árctico e
antárctico.
E temos sabido que a dita agulha de marear tem um ferro de norte e sul; e
sendo este ferro cevado na pedra de cevar, assim o pólo norte como o pólo sul
são tão sujeitos aos pólos árctico e antárctico do mundo, pelo dito cevamento
da pedra, por Nosso Senhor influir nela uma tão singular virtude, que em
nenhuma parte repousa nem descansa, senão quando direitamente com a flor de lis
se enfiam (*) em direito com os ditos pólos do mundo".
(*) -
os ferros
Ainda
no mesmo capítulo VIII, continua João de Lisboa :
" E
quando a dita agulha se acha em parte onde se diante põe a redondeza da terra e
mar entre a agulha e pólo, pelos desejos naturais que tem o dito pólo, se
inclina aquela onde lhe é mais propínquo (*) o que lhe causa o seu noroestear e
nordestear........e se no Cabo das Agulhas, que está junto do Cabo da Boa
Esperança, 28 léguas a leste dele, e no Cabo de São Agostinho [nota-Recife,
Brasil], e em outra alguma parte a dita agulha está com os pólos o mundo fixa,
é porque ali está recebendo o seu descanso....."
(*)
- próprio
No
Tratado da Agulha de Marear, João de Lisboa tenta sustentar a teoria segundo a
qual as linhas isogónicas teriam uma correspondência directa com os meridianos
terrestres. Segundo esta teoria, a declinação magnética estava directamente
relacionada com a longitude através de uma simples regra de proporcionalidade
de acordo com o desvio para nordeste ou noroeste que as agulhas apresentavam em
relação ao meridiano dos pólos, o meridiano “vero”, a linha agónica, linha que
une todos os lugares onde a declinação magnética é nula.
No
Tratado da Agulha de Marear, Capítulo IX - Em que se declara onde
havemos de tomar este meridiano vero, e assim a quantidade da quarta; e depois
das outras, começando da equinocial(*) para os pólos do Mundo,
João de Lisboa escreve o seguinte:
(*)
- equador
" Hás-de saber que este meridiano vero, onde as agulhas
verdeiramente ferem (*) o pólo do mundo árctico, divide a Ilha de Santa Maria e
a Ponta da Ilha de São Miguel, que são nas Ilhas dos Açores; e divide a esfera
em duas partes iguais,e passa entre as Ilhas de Cabo Verde, por cima da Ilha de
São Vicente, e assim passa entre o Cabo da Boa Esperança e o Cabo Frio [nota-Rio
de Janeiro, Brasil]. E aqui neste meridiano, achei sempre as
fixa no pólo do mundo......"
(*)
- fazem, indicam
É
desta forma que João de Lisboa identifica geograficamente o meridiano vero,
ou linha isogónica. Como facilmente se pode verificar, João de Lisboa
desconhecia que os lugares que ele identificava como fazendo parte do
meridiano vero, na realidade não se encontravam no mesmo
merididiano.
No
capítulo VI, é identificada a regra de proporcionalidade de acordo com o
desvio para nordeste ou noroeste que as agulhas apresentavam em relação ao
meridiano dos pólos, o meridiano “vero”.
"......aquela
é a diferença da tua agulha, e assim verás o afastamento; se é para o oriente
ou para o ocidente; e assim verás o paralelo em que estás, para saberes quanto
hás-de dar por quarta, porque as quartas não são iguais em léguas, por respeito
da estreitura da esfera.
Estes são os paralelos, e quanto vale cada quarta da agulha que te
noroestear ou nordestear:
Na equinocial (*) vale a
quarta....................................................350 léguas
A cinco graus da equinocial vale a quarta......................................347
léguas
A dez graus da equinocial vale a
quarta........................................342 léguas
A quinze graus da equinocial vale a
quarta....................................336 léguas
A vinte graus da equinocial vale a quarta......................................329 léguas
A vinte e cinco graus da equinocial vale a
quarta............................320 léguas
A trinta graus da equinocial vale a
quarta.....................................304 léguas
A trinta e cinco graus da equinocial vale a
quarta...........................280 léguas
A quarenta graus da equinocial vale a
quarta.................................264 léguas
A quarenta e cinco graus da equinocial vale a
quarta.......................249 léguas
A cinquenta graus da equinocial vale a
quarta................................226 léguas
A cinquenta e cinco graus da equinocial vale a
quarta......................203 léguas
A sessenta graus da equinocial vale a
quarta.................................175 léguas
A sessenta e cinco graus da equinocial vale a
quarta.......................164 léguas"
(*)
- equador
Em
1500, a declinação magnética em Lisboa era aproximadamente igual a 5ºleste, as
agulhas nordesteavam. Sendo a latitude de Lisboa aproximadamente igual a 38º
Norte (a 38 graus da equinocial) , e consultando a tabela supra, podemos
considerar a quarta como igual a 270 léguas. Como 5º (valor do desvio) é um
pouco menor que metade de uma quarta, podemos então considerar que de acordo
com esta teoria, Lisboa estava cerca de 130 léguas para leste do meridiano
vero, quando a distância real é um pouco menor que 800 milhas.
Incoerências do próprio Tratado
Como
já referido, a mais antiga versão que se dispõe do Tratado da Agulha de Marear
data de meados de Quinhentos quando o tratado é de 1514, o que significa que
existirão diversas cópias entre o original e a cópia mais antiga conhecida.
Como teremos oportunidade de verificar, no capítulo X do Tratado, são
atribuídos ás quartas valores diferentes dos que são identificados no capítulo VI,
o que demonstra que o Tratado sofreu diversas alterações ao longo dos anos.
No
Capítulo X - Para saberes quantas léguas estás arredado do
meridiano vero, João de Lisboa escreve o seguinte:
" Se quizeres saber quanto estás
arredado do meridiano vero dos pólos fixos, a saber, de 30 graus até aos 45 de
entre ambos os pólos, saberás que em qualquer quarta que vai fora do meridiano,
releva por quarta 250 léguas; e assim vai em todas as quatro quartas que não é
mais larga nem baixa, nem para leste nem para oeste, que as ditas 250
léguas, e isto desde o meridiano até chegar às quatro quartas, quer para a
parte de leste quer para a parte de oeste, porque só chega às quatro quartas, e
logo torna a buscar seu meridiano de grau em grau..............as quatro
quartas é o mais alto, e dali logo vai buscar o seu meridiano e desfaz o que
subiu......."
O
que é afirmado no parágrafo anterior, pode ser representado desta forma:
Como
primeiro facto a realçar, destaque para a regra das 250 léguas por quarta entre
os paralelos 30 e 45. O segundo facto digno de nota é que o autor do referido
parágrafo usa como base de raciocínio uma rosa dos ventos dividida em 16
quartas, o que coloca sérias dúvidas sobre a data original desta porção do
texto.
A
reforçar esta nossa convicção, vejamos o parágrafo seguinte, no mesmo Capítulo
X:
" e
há deste meridiano a este pólo movível 2000 léguas, e deste meridiano até o
outro meridiano há 4.000 léguas por esta altura dos 30 graus até os 45
graus...................."
Não se pode ter a certeza absoluta que
tenha sido João de Lisboa o responsável pela divulgação desta teoria, que
estabelecia uma relação directa e proporcional entre a declinação
magnética e a longitude. D. João de Castro, ao abordar esta teoria em
1538, após ter concluído, após diversas observações, que o desvio magnético não
tinha relação com as diferenças de meridiano, chegou mesmo a referir que o
facto de Ptolomeu ter feito passar pelas Canárias o meridiano para o início da
contagem das longitudes, poderia estar na origem desta falsa
teoria pois
"do que me
parece que naceo o engano de alguns pilotos cuidarem que, na parajem destas
ilhas, não varião as agulhas cousa alguma"
Apesar de D. João de Castro ter negado
a veracidade da teoria identificada no Tratado da Agulha de Marear em
1538, muitos pilotos continuaram a utilizar a teoria proposta
por João de Lisboa até meados do século XVII.
13.06.19
No Tratado da Agulha de
Marear, João de Lisboa tenta sustentar a teoria segundo a qual as linhas
isogónicas teriam uma correspondência directa com os meridianos terrestres.
Segundo esta teoria, a declinação magnética estava directamente relacionada com
a longitude através de uma simples regra de proporcionalidade de acordo com o
desvio para nordeste ou noroeste que as agulhas apresentavam em relação ao
meridiano dos pólos, o meridiano “vero”, a linha agónica, linha que une todos
os lugares onde a declinação magnética é nula.
Como sabemos, João de
Lisboa desconhecia em absoluto a existência do fenómeno da declinação
magnética, através do seu Tratado, ele apenas tentava relacionar o
"noroestar" e o "nordestear" das agulhas com o afastamento
geográfico em relação ao meridiano "vero", onde supostamente a
diferença entre o norte das agulhas magnéticas e o norte geográfico seria nulo.
Um dos mecanismos cujo
conhecimento chegou aos nossos dias e cuja utilização associada à agulha de
marear permitia a determinação mais rigorosa do momento da passagem pelo
meridiano do lugar de um determinado astro, era constituído por
uma semicircunferência de arame que era montada sobre a caixa da bússola,
com as suas extremidades colocadas em pontos opostos, com o objectivo
de que o plano da semicircunferência ficasse perpendicular ao da
rosa-dos-ventos, ou seja coincidente com o plano vertical que continha a agulha
de marear.
Mantendo a base da caixa
da agulha em posição horizontal, esta devia ser orientada (rodada) de modo que
o plano da semicircunferência coincidisse com o círculo vertical do astro em
observação. Esta operação tinha a designação de bornear a agulha. Nesta
posição era possível comparar o azimute da estrela com o valor indicado pela
agulha, sendo o ângulo obtido directamente através da leitura na
rosa-dos-ventos. De facto, nesta posição e caso o astro observado estive a
culminar, o plano vertical da semicircunferência de arame era o meridiano do
lugar e o ângulo observado era o valor da declinação magnética local. A estrela
Polar e a constelação do Cruzeiro do Sul, foram intensivamente e durante muitos
anos utilizadas neste processo.
A operação de
bornear era delicada pois a caixa da agulha de marear tinha de ser mantida
numa posição que garantisse que a sua base estivesse horizontal. A própria
leitura do ângulo observado era difícil de efectuar para quem rodava em
simultâneo a agulha de marear, existem vários relatos que demonstram de forma
inequívoca que esta operação era feita por duas pessoas. Por outro lado, quanto
mais elevado estivesse o astro em relação a horizonte, maior era o erro do
processo, isto porque a caixa também teria que ser colocada numa posição mais
elevada para permitir o "bornear" do astro.
É fácil concluir que
deverá ter existido um número elevado de variantes deste mecanismo. Pensamos
que em alguns casos a semicircunferência em arame (figura nº.15) possa ter sido
constituída por duas semicircunferências, paralelamente ajustadas entre si para
que existisse um pequeno intervalo (ranhura) entre os dois arames que
facilitasse o correcto alinhamento visual com o astro a observar.
.Fig. nº15 – Utilização da semicircunferência em arame
João de Lisboa, no
capítulo VI – “em que se declara como hás-de ter a agulha nas mãos”
- do Tratado da Agulha, e quando se debruça sobre o Regimento do Cruzeiro
do Sul (que não iremos abordar mas que era o equivalente aos Regimentos da
Polar mas no hemisfério Sul), faz a seguinte descrição da aplicação de um
aparelho ou artefacto que permitia medir a declinação da agulha :
“Ao tomar
esta agulha na mão, hás-de olhar que a tenhas sempre ao nível (*), porque
estando acostada (*) é falsa, e não se fará a verdadeira conta. E assim mesmo
hás-de ver que o seu circulo não jaza acostado (*), mas antes do zénite dela
caia uma linha com chumbo pelo meio da rosa (*); e, vindo assim, então está
para se fazer verdadeira operação ”
(*) – preocupação em
garantir a horizontalidade e estabilidade da agulha de marear
Prossegue João de Lisboa:
“Então bornearás pelos furos do semi-circulo o
pé do Cruzeiro (*) , até que seja metido pela abertura; então verás onde aponta
a flor-de-lis da agulha …”
(*) - estrela Crucis
Quando se afirma "bornearás
pelos furos" significa que a caixa da agulha
seria rodada até que os furos estivessem alinhados.
Esse alinhamento deveria coincidir com o alinhamento do astro no plano vertical
do semi-circulo...."até que seja metido pela abertura; então verás
onde aponta a flor-de-lis da agulha …”.
Só nesse preciso momento é
que a operação era considerada como concluída, "então verás onde aponta a flor-de-lis da agulha …”. Posteriormente era
efectuada a comparação entre o valor observado na agulha magnética para o Sul
magnético e o valor obtido através da aplicação do regimento do Cruzeiro do
Sul. A diferença, a existir, identificava o nível de afastamento entre os pólos
geográficos e magnéticos no local das observações.
A utilização deste tipo de
aparelho teve início na segunda metade do Século XV, quando já era evidente
para os navegadores que o norte das agulhas de marear e o norte geográfico não
eram coincidentes na maior parte dos casos. Recorrendo à Polar ou ao Cruzeiro
do Sul, com o intuito de medir a diferença entre os dois pólos, obtendo desta
forma o valor da declinação magnética local, os navegadores da época começaram
a perceber que as diferenças observadas variavam não apenas entre os
diversos locais por onde navegavam mas também com o passar do tempo.
A construção e
montagem a bordo deste tipo de mecanismos de leitura de azimutes e de sombras
surge com o início da utilização do Sol na navegação astronómica. O
conhecimento do momento da passagem meridiana do Sol era um factor crítico para
o cálculo da latitude. No caso da Polar e do Cruzeiro do Sul, se as
condições atmosféricas o permitissem, os respectivos regimentos eram aplicados
através de uma simples observação dos céus, não era necessário qualquer tipo de
leitura mais ou menos rigorosa de azimutes.
A aplicação de aparelhos
de sombras nas agulhas já seria prática relativamente comum, mais antiga, e que
era feita para identificar a passagem meridiana do Sol, tendo esta operação com
o tempo evoluído para a avaliação dos ângulos associados à declinação
magnética, passando a ser feita utilizando a Polar e o Cruzeiro do Sul, com a
intenção de medir o "afastamento entre os pólos".
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