O
Mito Solongo de Diogo Cão e o seu contexto
Debatem-se ainda hoje várias opiniões
(às vezes opções...) sobre as origens remotas e a "fundação" do Reino
do Kongo, sem se fazer sequer muita atenção à extensão ou validade dos
conceitos "fundação" e "Reino" e introduzindo no respectivo
estudo terminologias discutíveis que, infelizmente, vamos uma vez mais ser
obrigados a utilizar por falta de melhor solução.
Entretanto, e independentemente dessa
indecisão terminológica, não parece ainda possível descrever o processo de
formação destes Estados da África Central com um mínimo de precisão.
Correm vários mitos que a ele se
referem, e sobre esses mitos chocam-se várias leituras. O panorama dos
resultados é vasto, é rico, e é vago.
A documentação que nos chega não se
refere a estas épocas senão como reflexo duma tradição oral muito posterior e
tem-se visto mais do que uma vez, os velhos e outros informantes de trabalhos
de campo recitarem o que vem escrito nos livros que estiveram ao seu alcance.
Por vezes os relatores dessa
documentação não tinham discernimento suficiente para entrar em subtilezas
semânticas dos conceitos que usavam e que eram os que definiam a sua própria
sociedade, como os conceitos de "pai", "tio",
"sobrinho", "filho", etc.
O termo "Mani" muito usado
nessa documentação para distinguir os mais altos aristocratas, tais como o
"Mani Sonho", o "Mani Kongo", o "Mani Bata", etc.
que se saiba, nunca foi confirmado no terreno por pesquisadores mais modernos e
logo mais completos
Tudo parece indicar que se trate de
uma corruptela de "mwana" significando, "filho" no sentido
hierárquico e não genealógico.
Para António Gonçalves, o acto de
conceder uma terra ou um território a um visitante ou a qualquer pessoa, é um
acto de paternidade.
O "Mani Soyo" da época de
Diogo Cão falava do rei do Kongo como "seu sobrinho", não porque
fosse necessariamente seu "tio" mas sim porque eram ambos do mesmo
clã e ele, o do Soyo, era o mais-velho do clã, o Nkunkulu, título que sempre
preferiram e respeitaram os chefes solongo originários de Mbanza Kongo.
Mas apesar destas dificuldades vale a
pena passar uma rápida vista de olhos pela mitologia destes povos quanto mais
não seja para ganhar outra e tremenda dúvida:
Quem
eram afinal os basolongo?
Os basolongo são eminentemente
patrilineares.
Os muxikongo (de Mbanza Kongo) e todos
os outros bakongo que se conhecem, identificam-se pela filiação matrilinear.
Donde vem essa diferença tão significativa? Corresponde às diferenças entre
dois povos de origens diversas que se encontraram e aliaram de várias maneiras,
ou à diferenciação operada durante um processo comum?
Os basolongo falam um dialecto, o
kisolongo, bem distinto do kikongo clássico de Mbanza Kongo. Porquê?
Isso é mais uma vez o resultado do
encontro de dois povos diferentes que se aproximaram ou de um só povo que se
diferencia em partes?
O
Mito de Lukeni
Há portanto mais do que um mito
referindo-se ao processo de formação do Estado do Kongo, dito geralmente Reino
do Kongo.
Todos eles têm a mesma linha
narrativa, isto é, falam da primeira migração de um grupo de linhagens
associadas, simbolizadas pelo nome de um herói mítico, um "herói
fundador" como Ntinu Wene, como Nimi a Lukeni, falam também de um contexto
centro-africano onde se insere o itinerário percorrido, este último fixando um
território que virá a consagrar fronteiras míticas do referido Estado.
Para o efeito que se pretende neste
breve estudo, todos esses complicados enredos não são muito relevantes.
Mas não poderíamos compreender o
"mito de Diogo Cão", o navegador português que atingiu as praias do
Soyo pela primeira vez, sem compreender também o que eram e como se
desenvolviam os basolongo, isto é os habitantes do Soyo, assim como, qual o
ponto da situação, na altura, em relação ao Estado do Kongo.
Tomamos aqui uma síntese das versões
conhecidas do mito talvez mais representativo referido à formação do Estado do
Kongo, o mito de Nimi a Lukeni.
Segundo a documentação dos séculos XV
e XVI, e segundo a interpretação mais corrente, a "fundação" do reino
do Kongo parte de uma formação Yombe vinda de Vungu, na margem direita do
Zaire, provavelmente no Mayombe, que teria emigrado no Século XIV que se
encaminhou para a margem esquerda do rio onde acabou por fundar Mbanza Kongo.
Diz-nos esta tradição que vivia no
ponto de partida um chefe chamado Nimi a Nzinga. Nzinga é um nome atribuído a
um grupo de linhagens aliadas que se pretendiam descendentes do mesmo
antepassado.
Um determinado ramo do grupo Nimi a
Nzinga, chamado Nimi a Lukeni, é o que está na origem da fundação da capital do
Kongo, na margem Sul.
Neste conjunto, Nimi a Nzinga, nome
dominante, é o de uma aliança patrilinear. Lukeni é um nome da linha
matrilinear. Assim, Nimi a Lukeni é "filho" de Nimi a Nzinga e de uma
certa Nzanza que pertence a outro subgrupo chamado Nsaku Lau.
O herói "Lukeni" partiu,
pois da aldeia do seu "pai" e, em Mpemba, a região de Mbanza Kongo,
derrotou o chefe local Mbunlulu Mwana Mpangala.
A história posterior revela uma
aliança importante do poder com uma série de senhores que a documentação mais
antiga designa por "Mani Pangala" que representa as linhagens locais
com importância determinante nos assuntos religiosos e na gestão da
"propriedade linhageira".
Uma outra lenda sobre a
"fundação" do reino do Kongo que não vamos tratar nestas páginas,
relatada por A.Cordeiro em 1624, diz que Mbanza Kongo foi fundada por Ntinu
Wene (ou Motino- Bene), "um filho mais novo do Rei de Vungu" o qual
teria conquistado e unificado as numerosas chefaturas em que estava dividida a
formação local Kongo.
A narração deste mito está ornada com
os parâmetros habituais da linguagem mítica. Nela se destaca um personagem que
vem de longe com uma intenção reformadora (ou conquistadora) e com uma comitiva
ou "a sua gente", um itinerário muito bem definido, o encontro com
mandatários locais, e a instituição de uma aliança que assume formas diversas,
desde o casamento com uma mulher aborígene a uma guerra seguida de vitória
total mas sempre generosa.
Seja como for todas as lendas estão de
acordo com um ponto de origem em Vungu, donde rompeu uma migração cujo nome
designa não a pessoa nem sequer o conteúdo étnico do grupo mas apenas a
linhagem dominante, que chegou a Mpemba, onde fundou a cidade de Mbanza Kongo.
Importa referir que o missionário A.
Cordeiro, Duarte Lopes/Pigafetta e todos os cronistas que se referiram à
expedição de Diogo Cão, fixaram para a posteridade o nome de Nzinga a Nkuwo,
como sendo o rei do Kongo que os portugueses encontraram e que veio a chamar-se
D. João I.
Nzinga e Nkuwo são, uma vez mais,
nomes clâmicos que se repercutem por toda a história do Kongo e, principalmente
o primeiro, é uma chave para a história do Soyo e dos seus conflitos internos.
Diz também a tradição Kongo que este
rei teve um filho (entre outros) chamado Mvemba a Nzinga (D. Afonso I) e
Cordeiro acrescenta que a (linhagem central) Mvemba Nzinga deu "os grandes
reis até Henrique I" e ocupou os territórios de Mpemba e Soyo, o que
significaria que se estendeu nesse território pelo menos desde Lukeni até ao
"príncipe Nezinga" que incluiu o Soyo no território do reino.
Com efeito, a partir de Mbanza Kongo
teve lugar um processo de expansão por todo o território que acabou também por
chegar ao Soyo e assim, é o sangue Mvemba a Nzinga que entra no Soyo através de
um outro personagem ou herói que pertence já à mitologia local e que se chama
Nzinga a Mvemba (designado na tradição Soyo como "o príncipe
Nezinga").onde encontra os basolongo e organiza um estado sujeito à coroa
central.
Nas linhas que se seguem vamos ter
ocasião de ver como as linhagens reais em Mbanza Kongo tendo vindo de fora,
ficam ligadas ao poder local Mpemba Nkazi assim como no Soyo a linhagem
estrangeira (Mvemba Nzinga, vinda de Mbanza Kongo) sediada no Pinda, se liga ao
chefes da terra (do Pângala).
Os
Mitos de Fundação no Soyo
Todos os velhos do Soyo, tanto os das
linhagens "da terra" como os das linhagens "de fora" (de
Mbanza Kongo) estão de acordo que Nezinga, o "príncipe Nezinga", é o verdadeiro
fundador do Estado do Soyo embora absorvido pela soberania Kongo.
Mas, em 1980, os velhos ligados ao
poder de então que estava nas mãos das linhagens "da terra" - em que
um regente (na falta de um rei coroado) utilizava o título de Soyo dya Nsi-
afirmavam que a gente que Nezinga encontrou no Soyo, era um povo organizado e
evoluído, produto duma migração muito mais antiga dirigida pelo herói Nentombe.
A origem de Nentombe não porém muito clara.
A sua função ideológica sim: a de
criar uma formação dona da terra antes de Nezinga. Algumas das versões
recolhidas dizem: " Nentombe foi colocado por Deus aqui na terra do
Soyo...".
Outros porém afirmavam que
"Nentombe é originário de Mbanza Kongo.
Os espíritos arrastaram-no para o
Soyo... ".
Em todo o caso o herói permanece um
personagem misterioso que simboliza uma migração muito remota, cujo itinerário,
passando pelo Ambriz no Sul até Noki na margem do Zaire, estabelece um
território que se pode considerar mesmo ainda hoje, o território solongo.
Além disso, de certo modo o mito é
confirmado pela tradição Nezinga onde se diz que este príncipe encontrou no
Soyo uma sociedade rica, evoluída mas fragmentada, vagamente dirigida por um
chefe designado Soyo dya Nsi, sediado no Pângala.
De tudo isto ressalta com bastante
evidência um conflito de poder -- e de posse de terras -- no Soyo, entre os
descendentes de Nentombe e os descendentes de Nezinga, que vem até hoje.
A lenda de Nezinga tem também um
itinerário significante, como todas as outras, que sai de Mbanza Kongo, vai ao
Nzetu (zona do Ambriz) desce para a foz do Zaire e chega ao Pângala onde está o
Soyo dya Nsi , estabelece uma aliança em que fica claro que Nezinga segura o
poder mas o Chefe local continua o dono da terra.
Depois prossegue na sua viagem através
da qual foi espalhando o sangue Mvemba a Nzinga com casamentos dos quais
resultam mais de trinta filhos.
Um dos mitemas principais da tradição
Nezinga é o conflito surgido entre os seus próprios filhos e dos filhos com o
pai, por ocasião de uma doença deste, por via das misturas de sangue de que
eram portadores e dos diferentes compromissos que elas implicavam.
Num outro mitema diz-se que Nezinga,
depois de firmado o acordo com Soyo dya Nsi, voltou a Mbanza Kongo exibindo
esse excelente trunfo assim como duas cabaças, uma com água do mar (a riqueza)
e outra com areia do solo ( a numerosa população local), faz-se perdoar e é
acreditado pelo rei como governador das terras donde viera.
Algumas versões recolhidas informam
que Nezinga recebe autoridade sobre o Soyo por parte do rei do Kongo seu tio,
para resolver "os casos simples" deixando para ele, Ntotila, "os
casos complicados".
Este mitema vem a repercutir-se, como
veremos, no mito de Diogo Cão.
Finalmente, e para não alongarmos
muito este texto fora do assunto principal, resta acrescentar que, depois do
conflito de Nezinga com os seus filhos, estes foram deserdados excepto as duas
filhas, Ndilu e Mfutila que se haviam mostrado obedientes por amor filial.
O mito prossegue, depois da morte de
Nzinga através dos seus sucessores.
O herdeiro do trono solongo foi o
filho de Ndilu, a filha mais velha, que se chamou Mvemba a Ndilu.
Mas quando cresceu o filha de Mfutila,
a mais nova, a mãe exigiu uma parte da herança segundo as orientações do
falecido pai.
Gerou-se um conflito que resultou na
partilha do Soyo em dois Estados: o Soyo de Cima (Mfutila Nentandu) e o Soyo de
Baixo (Mfutila Neanda) situado na margem do Zaire, aliás o centro do conjunto
político.
Enfim, este mitema da partilha do Soyo
explica o estado actual da sociedade e do poder solongo que de facto apresentam
uma divisão em duas partes, hoje bastante diluída.
O panorama político-social do Soyo à
chegada da expedição de Diogo Cão, é pois o de um Estado solongo, dividido em
dois, o Soyo-de-Cima ao Sul e o Soyo-de-Baixo, ao Norte. o todo é contudo uma
dependência do trono Kongo em Mbanza Kongo, onde reina provavelmente a linhagem
Mvemba Nzinga.
A comunidade solongo, além de dividida
por dois Estados entre os quais o Soyo-de-Baixo, sediado no Pinda (mais
exactamente no Kitxitxi, segundo a tradição Nezinga) detém o poder central de
etnia, contem igualmente um certa diferenciação classista onde se destaca uma
camada social aristocrática, ela própria dividida também em duas camadas
aliadas mas contraditórias vindas de fontes diferentes:
a dos chefes das linhagens locais e a
dos chefes das linhagens Mvemba Nzinga originárias de Mbanza Kongo.
Resta acrescentar que, tendo sido
possível em 1990, recolher várias listas genealógicas do trono solongo
"desde a sua fundação" mais ou menos desiguais mas semelhantes
pareceu-nos interessante apresentar aqui aquela que se revela mais sólida,
embora apenas até à época do navegador português:
Mvemba a Ndilu - neto de Nezinga e
primeiro soberano, portanto depois da fundação do Estado através do herói
Nezinga.
Nkinvi kya Mvemba
Nkulumba dya
Ngolowolo - que aparece em outras
listas com o nome de NKUKULUMBA NEKOKANLOKO
Nekyanvu Kya IkwaNdom Malele kya Nsi -
o soberano do Soyo à chegada de Diogo Cão.
Pretenderam sempre os nossos
informantes que todos estes nomes pertencem à camada Mvemba Nzinga.
Contudo o nome Kya Nsi, de Dom Malele,
que significa "da terra", parece desmenti-lo.
Somente estudos mais detalhados
poderão esclarecer este assunto.
O
Cisma Antonino do Século XVIII e suas consequências
A cosmogonia tradicional solongo não
difere muito da dos outros povos desta parte de África.
Ela é simplesmente, como tudo o que
pertenceu ao antigo reino do Kongo, muito mais agitada.
De uma maneira geral e breve, é
próprio dessa cosmogonia o culta da água (implicando o da chuva com o seu
sacerdócio específico e seu sistema de pensamento), da árvore (principalmente o
da mulembeira ou mulemba ("ensendeira" na documentação que a ela se
refere) e o da pedra.
Os espíritos são os Nkisi Nsi e
habitam preferencialmente em certas lagoas como a nascente que abastecia a
Missão Católica do Pinda e que se chamava Malu ma Madiya ("Água de
Maria"), mas eles também costumam roçar-se pela folhagem da grande mulembeira
da casa do chefe, o que é visível quando a copa da árvore se agita chamando a
atenção dos velhos que conversam à sua sombra.
Os gémeos, essas criaturas
controversas enviadas ao casal para o pôr à prova, habitam igualmente as
camadas superficiais da água depositada. Mas sob essa camada há outra, a dos
albinos, os adversários dos gémeos.
A pedra e a árvore são também
habitáculos de cargas mágicas e geradoras de mitologia.
Da pedra surgiram um dia os homens
brancos, ao passo que os negros tinham nascido das árvores.
O culto dos antepassados (de certo
modo, o dos gémeos também) é talvez o mais formal da religião tradicional do
Soyo.
Ele é praticado em todas as aldeias
num altar constituído por um pequeno telheiro com não mais de um metro de
altura, que esconde uns orifícios no solo através dos quais se comunica com os
antepassados.
Chama-se Mvela e há entre estes
altares uma hierarquia estabelecida que apresenta no Pângala, o mais importante
dentre eles: o Mvela kya Soyo, que cobre o povo de todo o território, tanto
para o Soyo-de-Cima como para o seu vizinho do Norte, onde se encontra.
Mas é, provavelmente o culto da chuva
o mais determinante, porque se relaciona com a sobrevivência material das
pessoas, com a fertilidade e com a mulher. O seu sacerdote é designado Kintumba
e a sua importância é tão grande que a coroação de um novo soberano no Soyo tem
de ser presidida e ministrada por ele.
É também o Kintumba que faz vir a
chuva através de um culto hoje sincrético, onde se reza um padre-nosso em kisolongo,
apenas parecido com o original cristão em português.
Sobre este contexto vem justapor-se a
ideologia cristã desde o século XVI. Como afirma Thorton. Porém, essa
cristianidade "... era aceite, não como uma nova religião mas como um
culto sincrético, integralmente conservado com outros cultos do Kongo e
derivando do Kongo e não da cosmologia cristã ou europeia".
Hoje a atitude religiosa dos basolongo
é, de certo, predominantemente cristã. Mas atrás dessa atitude que devia
implicar um sistema ideológico igualmente cristão desenham-se todas as
correntes místicas que a atravessaram e reconfiguraram num composto bem difícil
de interpretar.
Ressalta porém de tudo isso que da
cosmogonia tradicional à ideologia oficial de hoje mais ou menos cristã,
intromete-se com uma força afinal determinante, o culto antonino que nasce no
fim do Século XVII na região de Mbridje (alto Ambriz) e se difunde a partir do
Soyo absorvendo de forma avassaladora a consciência dos basolongo e não só,
espalhando-se por todo o território Kongo, e novamente não só.
As raízes desse culto podem ser
reportadas a uma velha do Ambriz, Apolónia Mfumaria, conhecida igualmente por
Mfuta Mfumaria (Mfumadiya) que afirmava, entre outras, coisas ter encontrado no
rio a cabeça de Cristo (uma pedra arredondada e vulgar) com sinais do seu
descontentamento em relação aos pecados dos homens.
Daí surgiram os primeiros mandamentos
do antonismo, condenando os antigos feitiços, o trabalho aos domingos, e
sobretudo criticando o Senhor D. Pedro IV de Água Rosada, candidato ao trono
central do Kongo, que se refugiava no Kimpango, temendo os seus rivais na posse
da coroa até então abandonada.
Para a apóstola do antonismo, D. Pedro
devia marchar sobre S. Salvador e proclamar-se rei do Kongo.
Com efeito o retrato político dessa
época que resultava da desastrosa batalha de Ambwila contra o Governo colonial
de Angola (1666), onde teriam perecido "mais de cem mil homens", era
o de um Kongo desmembrado, dividido em ducados, e marquesados mais ou menos
independentes a fazerem guerras uns aos outros e a recolherem escravos, com
dois candidatos ao trono, de clãs rivais, respectivamente D. Pedro de Água
Rosada, um Kimpangu, da estirpe dya Nlaza, e D. João II Nsimba a Ntando, um
Kimpanzu, da estirpe dya Nlemba, refugiado em Bula ( mais ou menos Kinshasa
actual) a evitarem enfrentar-se pela posse da coroa e pela reunificação do reino.
Depois da velha Apolónia surgiram
outros apóstolos igualmente reformadores que aprofundavam mais um pouco o novo
credo, até que do Tubi, uma aldeia solongo onde era a chefe (mfumu), surgia a
figura impressionante de Beatriz Kimpa Mvita, a Santa Beatriz, ou Beatriz do
Kongo como ficou conhecida pelos historiadores.
Beatriz, uma jovem muito bela segundo
um relatório do capuchinho Bernardo da Gallo ao papa Clemente XI datado de
1717, relança o movimento que pela primeira vez se constitui em "cisma antonino".
Ela afirma ter estado no céu com S.
António o qual lhe propôs um programa reformador que limpava o culto cristão de
suas impurezas feiticistas e outras, como o crucifixo que não era mais que um
amuleto, definia uma moralidade de tipo novo, e fixava como objectivo central a
reunificação do Reino do Kongo, único meio de racionalizar o tráfico de
escravos que andava ao sabor dos apetites dos grandes senhores, de criar uma
sociedade crente, justa e sem preconceitos, de fugir também à influência terrível
dos capuchinhos italianos que missionavam a coberto do Governo de Angola, do
Papa e daqueles senhores da guerra.
Este movimento conheceu uma amplitude
inesperada, e face à atitude irresoluta de D. Pedro de Água Rosada, dividiu
mais o poder ainda em suspenso com um novo candidato ao trono, o General
"Chibenga", ou seja, D. Pedro Constantino de Almada, então Capitão General
de D. Pedro de Água Rosada.
A força do movimento era muito grande
na primeira década do Século XVIII.
Os escravos bakongo abandonavam seus
amos e apresentavam-se ao antonismo que se estruturava à maneira duma seita
activa e contestatária.
Uma oração nova, a Salve Antoniana,
substituía a Salve Reginae da liturgia católica e constituía o verdadeiro
manifesto do antonismo.
Para os antonistas, Jesus Cristo era
natural de S. Salvador (Bethelem), e mesmo a Virgem Maria e S. José eram
bakongo de nascimento, naturais do Ducado do Nsundi (Nazaré).
Mas o fim do decénio pôs um termo a
este sonho dourado e piedoso.
Beatriz, sob impulsão do P. Bernardo
da Gallo (que evoca o Santo Ofício para se justificar) e a conivência da
autoridade de D. Pedro (o Água Rosada), foi queimada na fogueira com o seu
principal oficial, o "Anjo da Guarda" S. João, em 1708.
No ano seguinte o Chibenga, com o seu
enorme exército meio antonino meio católico, foi derrotado na tremenda batalha
do Monte Evululu e D. Pedro ocupou finalmente S. Salvador fazendo-se coroar rei
do Kongo, como D. Pedro IV.
O antonismo refugiou-se no seu estrato
cosmológico misturado com os "espíritos da terra", mas o ponto
principal do seu programa, a restauração do reino do Kongo, fora cumprido.
Aparentemente a seita dissolveu-se
após os desaires sofridos. Mas o culto e a fé nos dois principais protagonistas
da ideologia antonina mantiveram-se e existem ainda hoje. St. António continua
a ser em todo o Kongo um pólo essencial da mitologia e a santa, agora chamada
Stª. Maria é, no Soyo, objecto de um culto discreto de fertilidade e de
propiciação da chuva.
Um novo mito surge no Soyo em data
incerta (após a queda do antonismo), que converte "D. Beatriz Kimpa Vita
ou D. Beatriz do Kongo, mulher ligada à política e à história do reino, na Stª.
Maria do Soyo, "espírito da terra" que habita nas águas da sua própria
nascente e que se ocupa dos problemas dos basolongo"
O
Mito de Diogo Cão
Diogo Cão, navegador português e
figura histórica do Século XV, entra finalmente na história tradicional do Soyo
como personagem mítica, embora aí apareça de uma maneira um tanto vaga, e
contudo com a missão muito precisa de reiterar a eclosão de uma nova cultura
entre os basolongo, de uma nova religião e de uma nova civilização técnica que
faz surgir bens materiais de tipo novo.
Ora a maneira como o seu mito se
desenvolve é a maneira clássica dos "heróis reformadores" da
mitologia savânica desta parte de África.
A sua estrutura narrativa é semelhante
à de toda essa mitologia.
O protagonista surge de algures, de
longe, com uma comitiva; tem encontros com os mandatários dos soberanos locais
mas não chega a encontrar o "rei" (ou "rainha") do Soyo.
A sua entrada em cena tem aspectos
espectaculares que valorizam o personagem e que o definem como
"estrangeiro".
Depois percorre um itinerário bem
definido onde a via fluvial -- a principal via comercial: o rio Zaire -- se
desenha como dominante, e acaba em Mbanza Kongo, junto do Ntotila.
Por uma das versões recolhidas desta
lenda, sabe-se que Diogo Cão desembarcou numa praia do Soyo onde encontrou uma
"pedra alta", sobre a qual havia dois santos: St. António e St.
Maria.
O visitante queria levá-los para
Portugal, mas St. Maria negou-se e veio a ser deixada na praia, criando uma
derivação da lenda destinada a dar conteúdo ao culto de St. Maria que, como
vimos atrás, ainda hoje se pratica no Soyo
Uma segunda versão diz que Diogo Cão
chegou num barco à vela (Nkumbi ya Nkutuktu) a uma praia do Soyo em Mbanza
Malele.
Aí encontrou um pescador, Ndom Lwolo,
um súbdito da rainha Malele kya Nsi, nome que figura entre os primeiros da
lista de soberanos do Mfutila Neanda ( o "Soyo de baixo").
Quando o navegador perguntou o nome da
terra, o pescador respondeu: "Kinzadiko" ("não sei").
E ao interrogá-lo sobre o nome do
grande rio, Ndom Lwolo respondeu: "Nzadi" ("Rio").
O visitante concluiu assim que o rio
se chamava "Zaire".
Então Diogo Cão manifestou o desejo de
ser apresentado à rainha.
A soberana foi informada deste
acontecimento e desta solicitação, mas lembrou-se que o seu antepassado Nezinga
recebera ordens do Tio, o Ntotila, que a impediam de, como seu suserano,
estabelecer relações com povos estrangeiros.
Por isso a rainha recusou qualquer
contacto com os visitantes mas mandou-os conduzir a Mbanza Kongo.
Um guia acompanhou, pois, a expedição
portuguesa rio acima, até Noki, onde desembarcaram. O navio ficou fundeado no
sítio chamado Nsuku a Nsambi a Nzombo, onde havia uma grande pedra com uma
mulembeira que lhe crescera no topo.
Desse modo evitava-se subir até
Matadi, "por causa dos ventos violentos da região, originados pelas
montanhas".
Prosseguiram a viagem por terra ao
encontro do Nekongoe da sua corte, que lhe ofereceram um grande banquete.
Note-se que o Nekongo, avisado por
mensageiros, já sabia da chegada dos portugueses e já os esperava.
O visitante deu ao Ntotila como
presente um rico pano que se chamou Nkampa.
O mito de Diogo Cão parece, enfim, pôr
em relevo algumas particularidades da consciência solongo.
Nele se recorda com especial vigor a
dependência do rei do Soyo para com o rei do Kongo, seu soberano.
Este aspecto não tem porém uma
intenção didáctica pura, mas ele é, muito mais, o resultado do movimento de
aproximação com Mbanza Kongo e portanto com o poder central por tradição, que
crescia no Soyo à data da recolha do mito (1990).
Contudo sabe-se pertinentemente pela
documentação existente , que os contactos de Diogo Cão com o dito "Mani
Soyo", foram numerosos e até frutuosos, pois inclusive o chefe solongo
fez-se baptizar.
Além disso a narração pretende mostrar
através dum contorno simbólico que o culto actual (e bastante antigo) de St.
Maria, surge da igreja católica (vem com Diogo Cão), mas em oposição a ela.
Recordemos que a santa, devendo ter
"regressado" com o navegador como sucedeu a St. António, preferiu
ficar no Soyo.
Enfim, para o historiador, há neste
mito numerosos elementos significativos inspirando um mínimo de segurança que
lhes permita serem tratados como factos históricos, quer pelo número muito
elevado de informantes que os reconheceram -- o que dá fixidez a uma cultura
histórica envolvente -- quer pela sua semelhança com a realidade concreta
conhecida.
No episódio histórico de Diogo Cão
fala-se de uma "pedra" (na ocorrência, o Padrão); essa
"pedra", de que, no mito, o Navegador é miticamente (e não
explicitamente) portador (ou criador) contém dois santos da religião católica:
St. António e St. Maria, o primeiro,
tanto na versão antonina do Soyo como na do Kongo desaparece, abstratiza-se e
só se manifesta indirectamente através da sua eleita, a santa; o itinerário
mítico da expedição pelo rio Zaire conduzindo a uma "pedra" que evoca
a descoberta de Yelala, facto histórico e por fim um Senhor do Soyo, um
"Mani Soyo" que na narração mítica se chama Ndom Malele Kya Nsi e na
narração histórica toma o nome de D. Manuel da Silva.
O que é pois o dito "Mito de
Diogo Cão", senão a representação que o povo solongo se faz do facto
histórico, modelado pela linguagem mítica local e pela ideologia dominante?
Assim sendo é também uma das fontes da
história do Soyo cuja leitura implica a descodificação de um mito.
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Bulletin de L'Institut Historique Belge de Rome, T. XXXIII, pgs 411 a 614,
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LUCCA, Lourenzo da - Relations sur le Congo, 1700-1717- in Jadin, 1961
MARCHAL, P. Gilles, s.sp. - Sur l'origine des basolongo - in
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n-4 ano 11, 1948, pgs 121 e ss.
RAVENSTEIN, e.g. - The strange adventures os Andrew Battell of leight,
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african catholic churc in the kingdam os Kongo, 1491- 1750 - in JOURNAL OF
AFRICAN HISTORY, 25, n.2 (1984) pgs 147-167, Cambridge
Tráfico
de Escravos na Bacia do Congo
E. J. Glave
Este texto é uma resposta ao vídeo
“Kony 2012” que com mais de 100 milhões de visualizações em apenas seis dias,
tornou-se o maior viral da história. Um comentarista pediu que antes que se
fizesse qualquer julgamento sobre o assunto é necessário conhecer como era o
sistema de vida dos africanos antes do contacto com os brancos e indicou o
seguinte texto:
The Slave Trade in Congo Basin
Um artigo de 1890, escrito por E. J.
Glave, um dos oficiais pioneiros do jornalista explorador, Henry Morton
Stanley, atesta que os negros não foram simplesmente arrancados mas resgatados
da África.
Este artigo foi publicado
originalmente no “The Century Magazine” em Abril de 1890. Todas as ilustrações
são do artigo original
A região do coração da África está a
ser rapidamente despovoada em consequência da enorme lista de mortos causada
pelo bárbaro comércio de escravos.
Não é apenas a servidão que a
escravidão implica clamando o interesse do mundo civilizado, mas o derramamento de sangue, a crueldade e a
miséria que isso envolve.
Durante a minha residência na África
Central, por várias vezes viajei pelas aldeias ao longo do Rio Zaire ou Congo e
dos seus quase desconhecidos afluentes. Nas
aldeias por onde passei,
testemunhei evidências da terrível natureza do mal.
Não porque tivesse procurado
testemunhar os sofrimentos que o tráfico transmite à humanidade, mas pela
crueldade encontrada por todos os lugares,
que visitava e inevitavelmente a
presenciava.
Não são apenas os árabes os únicos que praticam raides
escravistas na África Central.
O limite ocidental dessas práticas é o
rio Aruwhimi, pouco abaixo das cataratas de Stanley. O esclavagismo
inter-tribal existe a partir desse ponto, atravessa todo o Congo em direcção ao
Oeste, alcançando o Oceano Atlântico.
Durante os seis anos que residi na
região do Rio Congo, vi poucos árabes.
Neste relatório divulgarei apenas as
minhas experiências relacionadas com “o assunto da escravatura entre os
próprios nativos”.
Fui para o Congo em 1883. Viajei sem
parar com destino ao interior. Ao chegar a Stanley Pool, recebi ordens de meu
chefe, Mr. Henry M. Stanley para acompanhá-lo no seu pequeno barco En Avant.
Naqueles dias, Stanley estava
envolvido no estabelecimento de alguns postos de observação em pontos
estratégicos e importantes juntos às margens do alto Congo.
Lukolela, mil e duzentos e quarenta quilómetros
interior adentro, foi uma das escolhidas.
Tive a honra de ser seleccionado por
ele para ser o chefe desse posto. Como nunca houve um homem branco vivido nesse
lugar, comecei por ter um imenso trabalho para me estabelecer.
O local escolhido do nosso futuro
acampamento seria uma densa floresta, que até ao momento estava mais
familiarizado com o trombetear dos elefantes e do rugido do leopardo do que dos
seres humanos.
De início os nativos se opuseram à
minha permanência, e rapidamente passaram a questionar Stanley.
Disseram :
"Nós prometemos-te aceitar um
homem branco aqui, mas voltamos a falar sobre o problema, e concluímos que
seria melhor instalar o homem branco
noutro lugar. Nós os chefes, reunimos e
conversamos. Chegamos à conclusão de que não é desejável ter uma criatura tão
terrível na região".
Stanley disse: "Porque razão? O
que tem ele de mau por vocês se oporem?
Se nunca o viram!!". (Ainda não tinha desembarcado, porque estava muito
enjoado e incapaz de sair do barco). Eles disseram: "Não, nós não o vimos,
mas já ouvimos falar dele".
Stanley então disse: "O que você
ouviu sobre ele?".
Eles responderam: "Ele é metade
leão e metade búfalo, tem um olho no meio da testa, e vem armado com dentes
afiados e pontiagudos, e está continuamente a abater e devorar seres humanos, é
verdade?"
Stanley respondeu-lhes: "Não
sabia que ele era uma criatura tão terrível, mas vou chamá-lo, e deixar que vocês façam seus
próprios julgamentos".
Após a minha presença, essa ilusão imediatamente
foi dissipada, afinal, após vários dias de sofrimento por essa doença
aguda, realmente essa criatura não
parecia muito formidável e sanguinário.
Ali vivi durante vinte meses, o único
homem branco, de modo que tive todas as
oportunidades para estudar o carácter e os costumes dos nativos.
VIDA
DOS NATIVOS
Para colocar diante do leitor um
retrato da vida selvagem, intocada pela civilização, basta esboçar uma aldeia
típica de Lukolela da maneira que
intimamente conheci. O distrito contém cerca de três mil pessoas, a terra
ocupada por eles se estende ao longo da margem por três quilómetros, as aldeias
pontilham esta distância em grupos de cinquenta ou sessenta casas. As casas são
construídas em ambos os lados de uma rua comprida ou em praças. São cobertas
com folhas de palmeira ou grama, sendo as paredes feitas de bambu rachado ao
meio. Algumas dessas moradias contêm dois ou três compartimentos, com apenas
uma entrada; enquanto outras são estruturas longas, divididas até dez ou doze
quartos, cada uma tem uma entrada independente. Na parte de trás das habitações
possuem grandes plantações de
bananeiras, enquanto por cima delas se vêem
altas e imponentes palmeiras cobrindo as ruas e as cabanas com sua
própria sombra.
É no frescor da manhã que a maior
parte dos serviços da aldeia é executada. A maior parte das mulheres, depois
das seis horas, vai às suas plantações, trabalhar até o meio-dia. Outras permanecem na aldeia para cuidar da culinária
e outros assuntos domésticos. Grandes caldeirões de barro contendo peixes, bananas,
ou mandiocas, ficam a ferver sobre
fogueiras, em torno das quais se agrupam os meninos e, meninas e também idosos aproveitando o calor, até que os raios
quentes do Sol da manhã apareçam.
Enquanto isso, os pescadores juntam
suas armadilhas. Coam as suas armas, remam em direcção aos locais de pesca. Os caçadores preparam suas
lanças, arcos e flechas e saem à procura das trilhas de suas caças. O ferreiro
da vila acende o fogo, o enxó (desbastador de madeira) do carpinteiro ocupado
no trabalho é ouvido; as redes de caça e pesca são desenroladas e examinadas, o
curandeiro está ocupado gesticulando com seus feitiços.
Conforme o Sol se eleva no horizonte,
a azáfama tornar-se-á mais animada. O calor do fogo é descartado, todos
os departamentos dessa indústria se enchem de vida - o cenário rende-se alegremente aos rostos felizes e
sorridentes dos pequeninos que correm aqui e ali, entretidos nas suas
brincadeiras.
Ao meio dia o calor sufocante do Sol
tropical obriga a uma parada do trabalho. Uma quietude preguiçosa prevalece em
todos os lugares. Todos os recantos sombreados da vila são ocupados pelos
grupos que dormem, outros iniciam uma conversa, outros passam o tempo a cuidar
dos cabelos ou participam na ajuda dos problemas da higiene pessoal conforme o
seu costume nativo, como por exemplo raspar as sobrancelhas ou arrancar os
cílios - cuidam também de todos os pêlos
da face, excepto os do queixo, que são trançados sob a forma da cauda de rato.
Quanto mais rentes forem cortadas as
unhas das mãos melhor, ficam mais
elegantes e vistosas. Até à ponta do dedo, a unha fica cortada até à
polpa, se alguém quiser postar de belo ou de bela sempre tem alguma
graça as unhas das mãos ou dos pés inteiramente aparadas.
À hora de almoçar, a aldeia assume um
ar de calmaria, quebrada apenas por ocasionais risadas de grupos que discutem
os méritos do vinho nativo.
Toda a gente tem a mesma fraqueza de
exigir, a maior parte das vezes, bebidas mais fortes que a água. A natureza
providenciou ao africano o suco de palmeira, uma bebida muito palatal, que
quando fresca se assemelha a uma soda limonada bem forte, mas embriagante nos
seus efeitos.
É obtida da seguinte forma: os aldeões
encarregados dessa indústria particular sobem à árvore, aparam algumas dos
ramos com folhas, e de seguida, fazem três ou quatro furos de meia polegada de
diâmetro no pé da copa até o cerne da árvore.
De cada um destes furos fluirão a cada
dia cerca de meio litro de suco, uma pequena cabaça é colocada para recolher o
líquido. O conteúdo destas cabaças é recolhido
todas as manhãs. A bebida é denominada pelos nativos como malafu, bem
conhecida por todos os viajantes europeus, como vinho de palma.
Entre três e quatro horas da tarde a
vila novamente retoma o seu ar de actividade, que é mantido até o anoitecer.
Nesta região, perto do Equador, o Sol se põe às seis horas. Todas as
ferramentas são deixadas de lado, o trabalho é suspenso. As fogueiras são
novamente acesas, tapetes são levados para fora e espalhados ao redor, e a
principal refeição do dia é saboreada, depois os nativos se reúnem em torno do
fogo para conversar sobre os acontecimentos do dia e os planos para o futuro.
Os jovens vão para os terreiros e se embalam em suas danças nativas até
meia-noite.
Esta dança à noite é um espectáculo
para ser lembrado. Os artistas se organizam em círculos e dançam no ritmo da
batida dos tambores, seu único acompanhamento, e só ocasionalmente cantam suas
canções nativas. A paisagem tropical em volta permanece delineada em forte
contraste, as árvores mais próximas, às vezes, reflectem a sensacional luz das
fogueiras, que também atinge os corpos reluzentes dos dançarinos, criando um
contraste violento de luz e sombra, e toda a cena se faz impressionante pela
música selvagem, porém harmoniosa.
À meia-noite, quando todos os
moradores já se retiraram para suas cabanas, reina o silêncio, quebrado, às
vezes, pelo piado de um estranho pássaro, o rugido de um leopardo rondando por
ali, ou algum outro animal selvagem, e os variados sons dos insectos tropicais.
O
EFEITO ESCRAVIDÃO
Este é um retrato fiel do dia a dia da
vida levada em uma centena de aldeias do Congo, e se não fosse pela existência
da escravidão, isso atravessaria de um ano ao outro sem nenhum distúrbio. É a
presença do escravo na aldeia que brutaliza uma comunidade ora inofensiva e
pacífica. É a influência venenosa, que um homem recebe por seu poder de vida e
morte sobre o infeliz que ele comprara, e que estimula seu instinto selvagem
para derramar, durante as execuções e cerimónias, o sangue vivo do homem,
mulher ou criança que ele obteve - talvez em troca de algumas barras de latão,
alguns metros de pano de Manchester. Aqui em Lukolela, por exemplo, mal tinha
se estabelecido em meu acampamento, quando fui apresentado a uma daquelas cenas
horríveis de derramamento de sangue que ocorrem com frequência em todas as
aldeias ao longo do Congo, e que será apregoada enquanto a vida de um escravo
for contada como nada, e o derramamento do seu sangue contar tanto quanto o de
uma cabra ou de uma galinha.
Neste caso particular a mãe de um
chefe tinha morrido, foi decidido, como de costume, comemorar o evento com uma
execução. No primeiro sinal da madrugada a batida lenta e compassada de um
grande tambor anunciava a todos o que iria acontecer, e avisava ao pobre
escravo, que haveria de ser a vítima, que seu fim está próximo. Havia muita
evidência que algo incomum estava prestes a acontecer, e que o dia seria
dedicado a alguma cerimónia. Os nativos se reuniram em grupos e começaram
cuidadosamente a preparar suas vestes, vestir seus alegres panos de ombro, e
enfeitar suas pernas e braços com pulseiras de metal brilhante, e sempre se
deliciando com gestos e risadas selvagens quando discutem o evento. Após
tomarem uma leve refeição, trouxeram de suas casas todos os instrumentos
musicais disponíveis. Os tambores são fortemente batidos, enquanto grupos de
homens, mulheres e crianças formam-se em círculos e animadamente desempenham
danças, que consistem em contorções violentas dos membros, acompanhadas com
cânticos selvagens e com repetidos toques das cornetas de guerra feitas de
chifre, cada bailarino tentando superar seu companheiro na violência do
movimento e na força do pulmão.
Por volta do meio-dia, por pura
exaustão combinada com o calor do sol, eles são forçados a parar, quando
grandes jarros de vinho de palma são apresentados e começam as rodadas
embriagantes, aumentando o entusiasmo geral, mostrando sua natureza selvagem em
cores marcantes. O pobre escravo, que todo esse tempo ficou deitado no canto de
alguma cabana, com os pés e as mãos algemados, sendo vigiado de perto, sofrendo
a agonia e o suspanse que este tumulto selvagem sugere a ele, é agora levado
para alguma parte proeminente da aldeia, onde vai receber as vaias e zombarias
da multidão embriagada de selvagens. Os assistentes do carrasco, depois de
terem seleccionado um local adequado para a cerimónia, trouxeram um toco de
madeira de mais ou menos um palmo e
meio, onde o escravo é então colocado sentado sobre isso, suas pernas são
esticadas em linha recta para frente, seu corpo é amarrado a uma estaca por
detrás, cuja altura chega próximo dos ombros. E uma estaca é colocada por baixo
de cada axila para escorar o corpo, onde seus braços são firmemente amarrados;
outras amarrações são feitas em pequenas estacas cravadas no chão, perto dos
tornozelos e joelhos.
Uma vara é agora fincada em frente da
vítima numa distância de três metros, no topo estão amarrados vários cordões,
que estão presos pela outra ponta, a um anel de bambu. A vara é então curvada
como uma vara de pesca, e o anel é fixado ao pescoço do escravo, o qual se
mantém rígido e imóvel pela tensão. Durante esse preparo, as danças são
retomadas, agora mais selvagem e brutal ao extremo pela condição de embriaguez
do povo. Um grupo de dançarinos cercam a vítima e começam a imitar as
contorções do seu rosto que a dor causada por esta tortura cruel a obriga a
mostrar. Mas ela não deve esperar nenhuma simpatia deste bando impiedoso.
Nesse momento, a certa distância, se
aproxima duas linhas de jovens, cada um segurando uma folha de palmeira, de
modo que um arco é formado entre eles, por onde o carrasco é escoltado. A
procissão passa num passo lento, mas dançante. Ao chegar perto do escravo
condenado, todas as danças, cantos e tambores cessam, e a turba embriagada toma
seus lugares para testemunhar o último acto do drama.
Um silêncio sobrenatural acontece. O
carrasco usa um capacete feito de penas negras de galo, o seu rosto e pescoço
estão escurecidos com carvão, excepto os olhos, cujas pálpebras são pintadas
com gesso branco. Suas mãos e braços até o cotovelo, e os pés e pernas até o
joelho, também estão escurecidos. Suas pernas estão profusamente adornadas com
largas tornozeiras metálicas, e ao redor da cintura possui peles de gato
selvagem amarradas. Então ele executa uma dança selvagem em torno de sua
vítima, de vez em quando faz uma finta com a faca, um murmúrio de admiração
acontece vindo da multidão reunida. Ele se aproxima e faz uma marca de gesso
fino no pescoço do homem predestinado. Depois de duas ou três gingadas de sua
faca para obter o balanço certo, ele prepara o golpe fatal, e com um golpe de
sua arma super-afiada, ele separa a cabeça do corpo.
A visão de sangue traz um clímax de
frenesi aos nativos: alguns deles furam selvaticamente com suas lanças o tronco
ainda tremendo, outros o cortam com suas facas, enquanto o restante entra numa luta medonha pela posse da cabeça, que foi arremessada para o ar pela
tensão liberada da vara. Quando aquele que consegue segurar o troféu é
perseguido pela turba embriagada, o horrível tumulto se torna ensurdecedor; um
lambuza a face do outro com sangue, e como resultado sempre surgem brigas, onde
facas e lanças são utilizadas livremente. A razão dessa ansiedade em possuir a
cabeça é esta: o homem, que ficar com a cabeça contra todos os concorrentes até
o pôr do Sol, receberá um presente do chefe da aldeia pela sua bravura. É dessa
maneira que eles testam os bravos da aldeia, e eles dirão com admiração, em
relação ao herói local, "Ele é um homem corajoso, ele manteve duas cabeças
até o anoitecer".
Quando o gosto por sangue tem sido de
certa forma satisfeito, eles novamente voltam ao seu canto e dança enquanto
outra vítima é preparada, e a mesma chocante exibição é repetida. Às vezes até
vinte escravos são abatidos num único dia. A dança e o tumulto geral dos
bêbados continua até meia-noite, quando mais uma vez reina o silêncio absoluto,
em contraste ao abominável tumulto do dia.
Eu frequentemente ouço os nativos se
vangloriarem da habilidade de seus carrascos, mas duvidava da sua capacidade de
decapitar um homem com um único golpe da faca que usam, feita com um metal
mole. Imaginava que seriam obrigados a dar golpes para separar a cabeça
do corpo. Quando testemunhei esse espectáculo nauseante estava sozinho,
desarmado e absolutamente impotente para interferir. Mas a silenciosa agonia
deste pobre mártir negro, que morreu sem cometer nenhum crime, mas simplesmente
porque era um escravo, - cujos movimentos comoventes foram ridicularizados
pelos selvagens frenéticos, e a cada grito de agonia era um sinal para a explosão
desenfreada dum Carnaval hediondo daquela selvajaria - apelou tão fortemente
ao meu senso de dever que decidi impedir pela força qualquer repetição desta
cena. Declarei a minha resolução numa assembleia dos principais chefes, e
apesar de terem feito várias tentativas, não houve mais execuções durante o
resto da minha estadia naquele distrito.
Algumas palavras são necessárias para
definir a posição dos chefes de aldeia, como o mais importante factor na vida selvagem
africana, pois de uma forma ou de outra, eles estão intimamente ligados com as
piores características do sistema esclavagista, e são responsáveis por quase
todas as atrocidades praticadas nesse imbróglio.
Tais chefes são os líderes das
aldeias, e são classificados de acordo com o número de seus guerreiros. O
título de chefia não é hereditário, e sim adquirido por um membro da tribo por
provar a sua superioridade em relação a seus companheiros. O chefe mais
influente numa vila tem necessariamente o maior número de combatentes, e estes
são principalmente escravos, pois a fidelidade de um homem livre pode não
perdurar. A ideia do chefe sobre riqueza é - escravos. Qualquer tipo de
dinheiro que ele possa ter será convertido em escravos logo na primeira oportunidade.
A poligamia é regra em toda a África Central, e um chefe compra quantas
escravas pode pagar. Também se casa com
mulheres livres - que é, afinal, apenas outra forma de compra.
MODOS DE TORTURA.
Todas as tribos que conheci têm uma
ideia de imortalidade. Eles acreditam que a morte que os leva para outra vida,
é uma continuação das mesmas condições da vida que estão a levar agora; Um
chefe acha que, quando entra nessa nova
existência, será acompanhado de um número suficiente de escravos que o
credenciará a ter o mesmo valor no outro mundo que tem no presente. A partir desta crença é que
emana um dos seus costumes mais bárbaros - a cerimónia de sacrifícios humanos
após a morte de alguém importante. Após a morte de um chefe, certo número de
seus escravos é seleccionado para serem sacrificados, para que seus espíritos
possam acompanhá-lo para o outro mundo. Se este chefe possui trinta homens e
vinte mulheres, sete ou oito dos primeiros e seis ou sete dos últimos morrerão.
Os homens serão decapitados, e as mulheres serão estranguladas.
Quando uma mulher está para ser
sacrificada, ela será adornada com pulseiras de metal brilhante, suas vestes
serão cuidadosamente preparadas, seus cabelos serão perfeitamente trançados, e
seu corpo será coberto por tecidos fortemente coloridos.
Suas mãos serão então atadas para
trás, uma corda será passada em volta de seu pescoço e a outra extremidade será
passada por cima do galho de uma árvore mais próxima, e um sinal é dado para o
inicio da zombaria; e enquanto o corpo pendurado no ar realiza seus movimentos
convulsivos, os selvagens o seguem imitando primorosamente. Muitas vezes
acontece de uma criança também se tornar vítima dessa terrível cerimónia, sendo
enterrada viva na sepultura, servindo de travesseiro para o chefe morto. Estas
execuções ainda são perpetradas em todas as aldeias do Alto Congo.
Mas o escravo não é privado de sua
vida apenas com a morte do chefe da tribo, quando sua sorte é lançada. Vamos
supor que a tribo à qual ele pertence esteja numa guerra auto-destrutiva com
outra tribo do mesmo distrito, e por alguma razão política o chefe resolve
declarar o fim da disputa, então um encontro é organizado com o seu rival. Na
conclusão do encontro, para que o tratado de paz seja solenemente ratificado,
sangue deve ser derramado.
Um escravo é, portanto, seleccionado e
o modo de tortura antes de sua morte varia entre os distritos. No distrito de
Rio Ubangi o escravo é suspenso de cabeça para baixo no galho de uma árvore, e
ali é deixado até morrer. Porém, bem mais horrível é o destino desses
miseráveis em Chumbiri, Bolobo, ou nas grandes aldeias ao lado do rio Irebu,
onde a vítima expiatória é enterrada viva, com a cabeça deixada acima do solo.
Mas antes, todos os seus ossos são esmagados ou quebrados, e numa silenciosa
agonia ele espera por sua morte. Geralmente é enterrado numa encruzilhada, ou
ao lado dum caminho bem trilhado na saída da aldeia, e todos os moradores que
passam por lá, mesmo que sintam uma pontinha de pena momentânea, nunca se
atrevem a aliviar ou acabar com a miséria do condenado, pois seriam punidos com
as mais severas penalidades.
Como
os nativos são escravizados.
Os prémios da guerra entre tribos
fornecem os mercados com escravos, cuja marca cicatrizada, mostra que eles são
membros de diferentes famílias e de aldeias muito distantes.
Mas há algumas tribos, as mais
inofensivas e mais pacíficas, cuja fraqueza os coloca, frequentemente, à mercê
de seus vizinhos mais poderosos.
Sem excepção, a raça mais perseguida
no território Congo Free State é a Balolo com suas tribos, que habitam a área
que envolve os rios Lulungu, Malinga, Lupuri, e Ikelemba.
Eu quero aqui mencionar que o prefixo
"Ba" na língua dessas pessoas designa o plural, por exemplo, Lolo
significa um Lolo - Ba-lolo, significa o povo Lolo.
Essas pessoas são naturalmente meigas
e inofensivas. Suas pequenas, e desprotegidas aldeias são constantemente
atacadas pelas poderosas e ociosas tribos do Lufembe e Ngomb.
Estas duas tribos são vorazes
canibais.
Cercam as aldeias dos Lolos à
noite, e ao primeiro sinal do alvorecer invadem as aldeias dos distraídos
Lolos, matando todos aqueles homens que resistem e aprisionando todos os
demais. Depois os mais fortes são seleccionados, algemados pelas mãos e pés
para impedir sua fuga. O restante eles matam, e sua carne é distribuída entre
si.
Como regra geral, após o raide eles
formam um pequeno acampamento, acendem suas fogueiras, apoderam-se de todas as
bananas da aldeia, e devoram a carne humana. Em seguida, marcham para um dos
numerosos mercados de escravos, onde eles trocam os cativos do Rio Lulungu por
colares, roupas, fios de latão, e outras bugigangas com os traficantes de
escravos. E esses traficantes, por sua vez, agrupam seus escravos em suas
canoas e os levam às aldeias do rio Lulungu onde estão os mercados mais
importantes.
Masankusu, situado na junção dos
afluentes Lupuri e Malinga, é de longe o mais importante centro de comércio de
escravos. O povo de Masankusu compram seus escravos dos assaltantes de Lufembe
e Ngombe, e os vendem aos nativos e comerciantes do rio abaixo. Em Masankusu,
os escravos são expostos para venda em longos galpões abertos, cobertos de
grama presa em madeira lavrada. É
comovente ver os barracões num desses galpões de escravos. Onde são amontoados
como animais.
NO
GALPÃO DOS ESCRAVOS.
As imagens que acompanham, a partir de
esboços que tracei em Masankusu, dão uma ideia do sofrimento que é suportado
pelos cativos em inúmeros mercados. Eles são amarrados em troncos cortados
grosseiramente que lhes causam enormes feridas em seus membros, às vezes algum
é imobilizado pelo peso de um tronco de árvore sobre seu corpo, enquanto seu
pescoço é preso numa forquilha de madeira. Outros permanecem sentados por
dias com seus membros amarrados numa única posição, presos ao pilar por um
cordão amarrado a um anel de bambu que envolve seus pescoços ou são
entrelaçados com seus cabelos lanosos.
Muitos morrem por pura fome, enquanto
que outros recebem alimentação o suficiente para sobreviverem, e mesmo assim
com muita relutância. Essas famintas criaturas, de facto, formam uma visão
verdadeiramente deplorável.
Depois de sofrer nesse cativeiro por
um curto período de tempo eles se tornam meros esqueletos. Ali se pode ver:
mães com seus bebés, jovens de ambos os sexos, meninos e meninas, e até mesmo
bebés que ainda não sabem andar, cujas mães morreram de fome, ou foram mortas
pelos Lufembes. Raramente se vêem velhos, estes são todos mortos nos ataques:
seu valor comercial é muito pequeno, nenhum fardo é carregado por eles.
Ao testemunhar os grupos desses
infelizes pobres e indefesos, com suas aparências definhadas de olhos
afundados, seus rostos com semblantes de muita tristeza, não é difícil perceber
a dor intensa que sofrem internamente, mas eles sabem muito bem que nada
adianta apelar para a simpatia de seus impiedosos senhores, que foram
acostumados, desde sua infância, a testemunhar actos de crueldade e
brutalidade, de modo que para satisfazer sua insaciável ganância eles próprios
vão cometer ou permitirão que seja cometido, qualquer atrocidade, até mesmo
pior. Essa lamentável visão num desses barracões de escravos não representa
nem a metade da miséria causada pelo tráfico – casas destruídas, mães separadas
de seus bebés, maridos de suas esposas e irmãos de suas irmãs.
Na minha última passada por Masankusu
vi uma mulher escrava que tinha com ela seu filho, cujo esfomeado corpo, ela
carregava enquanto mamava em seu exaurido seio. Fui atraído pela tristeza do seu rosto, que demonstrava um enorme sofrimento. Perguntei-lhe a causa disso, e
ela soluçando me respondeu em voz baixa o seguinte: "Eu vivia com meu
marido e meus três filhos numa aldeia do interior, a poucos quilómetros
daqui. Meu marido era um caçador. E dez dias atrás, os Lufembes atacaram a
nossa vila; meu marido defendeu-se como pôde, mas foi dominado e ferido com
lanças até à morte junto com vários outros moradores. Fui trazida para cá
com meus três filhos, dois dos quais já foram comprados pelos comerciantes. Eu
nunca mais os verei. Talvez eles vão matá-los após a morte de algum chefe, ou,
talvez, para servir de alimento. Meu filho restante, você vê, está doente,
morrendo de fome, e eles não nos dão nada para comer. Imagino até que ele seja
tirado de mim em poucos dias, pois o chefe, temendo que ele morra e se torne
uma perda total, o tem oferecido por um preço muito pequeno. Quanto a
mim", disse ela "eles vão me vender para uma das tribos vizinhas,
para trabalhar nas lavouras, e quando eu me tornar velha e incapacitada para o
trabalho, então serei sacrificada".
Havia certamente quinhentos escravos
expostos à venda nesta única aldeia. Grandes canoas estavam constantemente
chegando vindas do rio abaixo, com mercadoria de todos os tipos para trocar
pelos escravos. Outro grande comércio é realizado entre os rios Ubangi e
Lulungu. As pessoas que habitam o pontal do Ubangi compram os escravos Balolos
em Masankusu e em outros mercados, os levam até o rio Ubangi para trocá-los por
marfim com outros nativos. Estes nativos compram os escravos apenas para
alimento. Após comprá-los, os escravos são alimentados com bananas maduras,
peixes e azeite, e quando estiverem em boas condições são mortos. A cada mês,
centenas de escravos Balolos são levados para o rio e sacrificados. Outra grande
quantidade de escravos é vendida para as grandes aldeias do Congo, para suprir
as vítimas das cerimónias de execução.
Muitas vidas são perdidas durante a
captura, e muitas sucumbem no cativeiro por fome. Do restante, uma parte é
vendida para se tornarem vítimas do canibalismo e das cerimónias dos
sacrifícios humanos. Poucos são os que realmente conseguem sobreviver e
prosperar.
Canibalismo.
O canibalismo existe entre todos os povos do Alto Congo a Leste da longitude 16 ° E, e isso prevalece numa extensão ainda maior entre os povos que habitam as margens dos seus numerosos afluentes. Durante uma viagem de dois meses pelo rio Ubangi, fui constantemente posto em contacto com o canibalismo. Os nativos orgulham-se do número de caveiras que possuem, quando mostram o número de vítimas que foram capazes de obter.
O canibalismo existe entre todos os povos do Alto Congo a Leste da longitude 16 ° E, e isso prevalece numa extensão ainda maior entre os povos que habitam as margens dos seus numerosos afluentes. Durante uma viagem de dois meses pelo rio Ubangi, fui constantemente posto em contacto com o canibalismo. Os nativos orgulham-se do número de caveiras que possuem, quando mostram o número de vítimas que foram capazes de obter.
Vi uma cabana indígena, em torno da
qual fora construída uma mureta feita de barro com 30 centímetros de largura,
onde havia fileiras de crânios humanos, formando um quadro horripilante. Aquilo
que o chefe mais se orgulhava, pela maneira com que demonstrava e mais chamava
a minha atenção, eram as pencas formadas com vinte ou trinta caveiras,
dependuradas em posições de destaques da aldeia.
Perguntei a um jovem chefe, cuja
idade, certamente, não passava de vinte e cinco anos, quantos homens ele havia
comido na sua aldeia, e respondeu:
trinta. Se espantou com o horror que demonstrei pela sua resposta. Também numa
aldeia, ao comprar uma presa de marfim, os nativos pensaram que talvez pudesse
comprar crânios e várias braçadas dessa mercadoria foram trazidas para o meu
barco em poucos minutos. Senti que seria um pouco difícil negociar no rio
Ubangi, pois o padrão de valor por ali era a vida humana - carne humana. Recebi
em diversas ocasiões, ofertas para trocar um homem da minha tripulação por uma
presa de marfim, e também me lembro duma oferta para trocar um dos
tripulantes do meu barco por uma cabra. "Carne por carne", disseram
eles. Fui muitas vezes convidado, também, para ajudá-los na luta contra outras
tribos vizinhas. Eles diziam: "Você pode levar todo o marfim, que
ficaremos com a carne", ou seja, é claro, todos os seres humanos que
poderiam ser mortos na luta. Os mais hostis deles frequentemente ameaçam que
iriam nos comer, e eu não tenho dúvida de que eles teriam feito isso se não
fossemos forte o suficiente para cuidar de nós mesmos.
Durante a minha primeira visita às
águas do alto Rio Malinga, o canibalismo chamou minha atenção pela forma
diabólica que foi realizado. Numa noite eu ouvi gritos penetrantes duma
mulher, seguido por um abafado gemido, então ouvi gargalhadas e tudo voltou ao
silêncio novamente. De manhã fiquei horrorizado ao ver um nativo oferecendo aos
meus homens um pedaço de carne humana, em cuja pele havia a tatuagem que
marcava a tribo Balolo. Mais tarde me contaram que o grito que ouvi durante a
noite era de uma escrava cuja garganta havia sido cortada. Eu fiquei ausente
desta vila de Malinga por dez dias. Na minha volta, eu perguntei se algum
derramamento de sangue havia acontecido, e fui informado de que outras cinco
mulheres haviam sido mortas.
Na minha estada no rio Ruki, no início
deste ano, fui apresentado à outra prova do terrível destino dos escravos.
Em Esenge, uma aldeia onde eu parei a fim de cortar lenha para o meu barco,
ouvi sinistras batidas de tambores e sons de muita alegria e animação. Fui
informado por um dos nativos da vila que uma execução estava acontecendo. Pela
minha indagação se eles tinham o hábito de comer carne humana, ele respondeu:
"Nós comemos o corpo inteiramente." Eu ainda perguntei o que eles
faziam com a cabeça. "Comemos", ele replicou, "mas primeiro a
colocamos no fogo para queimar o cabelo".
Existe um pequeno rio situado entre o
Ruki e Lulungu, o chamado Ikelemba. Na sua foz não possui mais do que 130
metros de largura. Suas águas são navegáveis por 220 quilómetros através das
terras dos Lolos. Em proporção ao seu tamanho ele fornece mais escravos do que
qualquer outro rio. Ao observar no mapa, vê-se que o Ikelemba, Ruki, e Lulungu
correm paralelos um ao outro. As grandes tribos esclavagistas que habitam as
terras entre esses rios, trazem seus escravos aos mercados mais próximos
descendo qualquer um desses rios.
O
MERCADO LOCAL DE ESCRAVOS
Há algumas clareiras em certos
intervalos ao longo das margens do Ikelemba, onde em determinados dias são
realizados os pequenos mercados locais para a troca de escravos. Na medida em
que se sobe o rio nota-se que os pequenos assentamentos às margens do rio vão
se tornando cada vez mais frequentes, e oitenta quilómetros acima de seu
pontal, sua margem esquerda torna-se densamente povoada. É notório que as vilas
são todas do lado esquerdo do rio, pois seu lado direito é infestado por tribos
saqueadoras e itinerantes que atacam qualquer assentamento praticado em sua
margem. Todos os escravos deste rio são Balolos, uma tribo que é facilmente
reconhecida pelas exageradas tatuagens marcadas na testa, nas têmporas e no
queixo.
Durante minha visita de dez dias a
esse rio encontrei dezenas de canoas das regiões da foz do rio Ruki e do
distrito Bakute, cujos proprietários vieram para a compra de escravos, e
estavam retornando com suas mercadorias adquiridas.
Quando são transportados pelo rio, por
conveniência, os escravos são aliviados dos seus pesados grilhões. Os
comerciantes sempre levam consigo, pendurados nas bainhas de suas facas,
algemas leves feitas de corda e bambu. O escravo quando comprado é colocado no
assoalho da canoa numa postura de agachamento com as suas mãos à frente,
atadas por essas algemas. Durante a viagem ele é cuidadosamente guardado pela
equipe de remadores que trabalham em pé, e quando vem a noite, a canoa é
aportada nas margens, suas mãos são mudadas para trás e amarradas para evitar
que tente fugir roendo a corda. Para tornar qualquer tentativa de fuga
impossível enquanto dormem, seu pulso é atado ao de um de seus mestres. Numa
das canoas notei que havia cinco comerciantes, e sua carga de miseráveis
humanos era composta de treze magros escravos Balolos entre homens, mulheres e
crianças pequenas, todos mostrando, inequivocamente, através de seus olhos
fundos e corpos definhados a fome e a crueldade, a que foram submetidos. Esses
escravos são levados para as grandes aldeias no pontal do rio Ruki, onde são
trocados por marfim com as pessoas do Ruki ou do distrito Ubangi, que os
compram para abastecer suas orgias canibais.
Alguns, no entanto, são vendidos pela
redondeza, os homens para serem usados como guerreiros, e as mulheres como
esposas, mas em comparação com os números daqueles que sofrem com a perseguição
dos caçadores de escravos, muito pouco de facto sobrevivem para alcançar uma
posição segura, porém muito humilde numa vila.
O estado deplorável destes Balolos
sempre me entristeceu, intelectualmente falando eles possuem um grau bem acima
de seus vizinhos; e realmente é devido à sua natureza mansa, e à sua disposição
pacífica, confiante, que facilmente caem como presa das hordas degradadas e
selvagens de seu distrito.
Eles têm gosto artístico e genialidade
mecânica, fazem escudos primorosamente tecidos, e curiosas lanças e facas moldadas
e decoradas. São extremamente inteligentes, fiéis, e, quando devidamente
treinados, são corajosos.
NO
EXTREMO INTERIOR.
Nos meses que viajei pelo Alto
Congo e seus afluentes, em várias ocasiões tive que defender-me contra a
hostilidade dos nativos. Minha equipe era composta por quinze homens, a maior
parte dos quais eram Balolos, e nunca fui enganado por eles. Quando os
empreguei, chegaram às minhas mãos como pedra bruta. Eram selvagens,
alguns deles canibais, mas são de natureza muito maleável, e com uma
política firme e justa fui capaz de convertê-los em servidores dedicados e
fiéis.
Como prova do que pode ser feito por
ganhar a confiança dos nativos, através de uma política de firmeza e justiça, acho que posso, seguramente, citar a minha experiência na Estação Equador. Permaneci por lá quase um ano, com apenas um soldado Zanzibar, todo o resto
do meu povo eram nativos que recrutei pelas aldeias vizinhas. Estava
cercado por todos os lados por pessoas poderosas, que, se quisessem, poderiam
facilmente ter-me superado e pilhado o meu posto. Mas nunca houve tentativa do
menor acto de hostilidade ou de natureza hostil, senti-me tão seguro entre
eles como sinto na cidade de Londres ou Nova Iorque.
É verdade que os nativos não tinham
nada a ganhar por me molestarem, eles eram inteligentes o suficiente para
perceber esse facto. Na realidade, minha presença era, em boa dose, benéfica
para seus interesses. Tinha pano, colares, espelhos, colheres, copos, e
outras bugigangas, as trocava com eles, e sempre que organizava uma
pequena caçada atrás de elefantes e hipopótamos, a minha parte no consumo
desses animais era muito pequena, a maior parte da carne dava aos nativos.
Minha vida durante a minha estada na
Estação Equador foi muito agradável. As pessoas eram duma disposição feliz e
alegre, todos foram simpáticos e falantes. Sentavam-se por horas e ouviam
atentamente os meus contos da Europa, e suas perguntas inteligentes provavam
que eram dotados de profundo entendimento. Não há público mais atento em
todo o mundo que um grupo de selvagens africanos, se puder falar a sua língua
e os fazer entender.
Quando me cansava de falar, passava
a fazer-lhes perguntas sobre os seus modos, costumes e tradições. Como sempre ficava muito impressionado pela sua crueldade, sempre fizera questão de
expressar a minha repulsa, e até mesmo dizia-lhes que um dia lideraria um
levante dos escravos. Minha audiência em tais ocasiões consistia principalmente
de escravos, e esses pobres miseráveis sempre ficavam muito satisfeitos por
ouvir minhas opiniões favoráveis a eles.
Meus argumentos, pude ver muitas
vezes, atraía fortemente os interesses dos próprios chefes, quando lhes
perguntava: "Por que vocês matam essas pessoas? Vocês pensam que eles não
têm nenhum sentimento, porque são escravos? Como gostariam de ver seus
próprios filhos levados para longe de vocês e vendidos como escravos, para
satisfazer os desejos de canibalismos, ou de execução?". Alguns deles, na
época, até disseram que não iriam mais realizar execuções. Estas execuções
continuaram a acontecer, mas de forma secreta, e as notícias desses
acontecimentos ficavam longe dos meus ouvidos até algum tempo depois, quando ficava s saber através dos meus próprios homens. Embora fosse incapaz de
impedir a realização de tais cerimónias, com a força que tinha à minha disposição
dum único soldado Zanzibar.
ALGUNS
COSTUMES BÁRBAROS.
Lembro-me de uma execução que
aconteceu,e os detalhes que fiquei a saber bem depois. Foi para celebrar a morte
dum chefe que morrera afogado durante uma expedição comercial.
Tão logo a notícia de sua morte chegou
à aldeia, vários dos seus escravos foram amarrados pelas mãos e pés, e presos no
fundo de uma canoa. À noite, essa canoa foi rebocada para o meio do rio,
buracos foram feitos na mesma, e foi deixada para afundar com sua carga humana.
Quando formos capazes de proibir essa
terrível perda de vidas, que as crianças de hoje são obrigadas, constantemente,
a testemunhar, sentimentos mais humanos poderão se desenvolver, e cercado por
influências mais saudáveis - pelo menos longe das exposições abertas da
crueldade - eles crescerão no meio de uma geração muito mais nobre.
Nativos que sofriam nas mãos dos
traficantes de escravos, repetidamente, pediam-me para ajudá-los.
No Malinga, onde a carne humana fora-me ofertada para venda, os chefes reunidos votaram numa oferta para mim de várias
presas de marfim se vivesse entre eles e os ajudasse a se defenderem dos
Lufembes, e prepará-los a resistir às perseguições que sofriam das tribos
vizinhas, que continuamente realizavam incursões em seus territórios,
capturando seus povos.
Eles alegaram: "Nós vamos acabar
morrendo de fome, pois não podemos mais fazer plantações, porque quando nossas
mulheres vão para a lavoura elas são capturadas, mortas e comidas pelos
argilosos Lufembes, que vivem, constantemente, rondando por perto e levam
qualquer desgarrado que encontram". Um velho chefe, Isekiaka, disse-me que
12 das suas mulheres haviam sido roubadas, uma a uma, e várias de suas crianças.
Na verdade, a condição de vida das
pessoas na região dos Malingas é tão miserável, que vários deles foram
expulsos, pelos Lufembes, de suas plantações, e realmente compelidas a viverem
no rio, em palafitas apoiadas sobre estacas. Nessas miseráveis habitações
lançam suas redes, e quando o rio está cheio de peixes subsistem quase inteiramente do produto de suas pescas.
Isto deu origem a um curioso estado de
coisas, pois, como os Lufembes cultivam apenas mandioca e produzem mais raízes
do que consome a tribo, então ficam felizes em trocar esse produto pelo
pescado capturado pelas suas vítimas. E assim, quando esse mercado é realizado,
uma trégua armada é declarada, então os Lufembes e os Malingos se misturam e
negociam, os seus produtos mantidos numa mão e uma faca de espera na
outra. Assim, facilmente se imagina que a perseguição é incessante, as
quais esses nativos sofrem, os torna cruéis e impiedosos.
Em todas as regiões do Malinga se
tornaram tão brutalizados pela fome que comem os seus próprios mortos, a
aparência de qualquer uma das suas aldeias, sempre denota numa degradante miséria e
fome. Tenho visto repetidas vezes, crianças pequenas comendo raízes de
bananeira, tentando em vão obter algum tipo de alimento de sua seiva. O facto deles permanecerem vivos é um mistério. Qualquer coisa viva que eles são capazes
de pegar é visto como alimento; vários tipos de moscas, lagartas, grilos são
todos consumidos por essas pessoas.
Somente quem vive durante algum tempo
na África Central, pode entender a imagem da vida, que resulta nas mentes dos
selvagens pelas mais atrozes e desenfreadas crueldades.
Cercados desde a infância por cenas de
derramamento de sangue e tortura, seus feriados e grandes cerimónias marcadas
por massacres de escravos, a mais branda e mais sensível das naturezas torna-se
brutalizada e insensível, e se isto acontece com o livre, qual deve ser o
efeito sobre o escravo, arrancado de sua mãe quando ainda criança, talvez com a
idade de dois anos, e ainda, em sua infância obrigada a sofrer privações. Se
realmente esta criança participa do desafio do canibalismo e das cerimónias de
execução, não se pode esperar que ele pudesse se apiedar com qualquer
sofrimento.
As pessoas na parte inferior do alto
Congo raramente praticam captura de escravos. É somente quando vamos ao
distrito Bakute que temos contacto com isso. As grandes aldeias ao redor de
Stanley Pool, - Chumbiri, Bolobo, Lukolela, Butunu, Ngombe, Busindi, Irebu, -
Lago Mantumba, e o Rio Ubangi todos contam principalmente com as tribos Balolos
para obterem seus escravos. Todas essas aldeias, excepto Stanley Pool fazem
diariamente sacrifícios humanos, seja pela morte de algum chefe ou por algum
outro motivo cerimonial.
Qualquer tipo de comércio realizado
nesta parte da África só aumenta o derramamento de sangue, porque a ambição do
nativo é ter o maior número possível de escravos ao seu redor, e quando ele
vende uma presa de marfim ou qualquer outro artigo, dedica quase todas as
bagatelas que obteve na compra de novos escravos. Assim, estará cercado
por muitas mulheres e guerreiros durante sua vida, e terá sua importância
marcada na sua morte pela execução da metade do número de seu povo.
A
ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO
Frequentemente conversava com essas
pessoas, e explicava-lhes a iniquidade da escravidão, mas eles argumentavam:
"Nós trabalhamos duro demais em nossas expedições comerciais para obtermos
esses escravos, por que deveríamos abandoná-los para que outros que não
trabalham os tomem? Nós os compramos, são nossos escravos, temos o
direito de fazer o que quiser com eles".
A cerimónia de execução, com sua
brutalidade resultante, deveria ser, e pode ser extinta. O derramamento de
sangue é ainda maior hoje, do que quando Stanley viu esse povo pela primeira
vez em 1877; a razão disso, como já foi mencionada anteriormente, é que o
contacto com os brancos tornou os nativos mais ricos, e permitiu-lhes obter
mais escravos. As grandes potências do mundo civilizado estão agora a discutir o movimento abolicionista, e caso tais discussões resultem em alguma acção
conjunta voltada para a supressão do comércio no interior, existem algumas
características peculiares que podem ser transformadas em vantagens:
Primeira, e mais importante, este
tráfico não possui complicação de qualquer tipo de fanatismo religioso.
Segunda. Esse povo é desunido; cada aldeia de cinquenta ou sessenta casas é independente da sua vizinha e pequenas guerras familiares estão frequentemente a acontecer.
Segunda. Esse povo é desunido; cada aldeia de cinquenta ou sessenta casas é independente da sua vizinha e pequenas guerras familiares estão frequentemente a acontecer.
Terceira. Não há nada tão convincente
para o selvagem Africano como a superioridade física. Agora, todos estes pontos
são a favor do movimento anti-esclavagista. A ausência de fanatismo religioso,
a condição de desunião entre os nativos e seu reconhecimento da superioridade
física devem ser todos aproveitados, e sempre ter isso em mente quando do
projecto dos planos para a supressão do tráfico de escravos e sua barbárie
resultante.
Em minha opinião, levará alguns anos
antes que o tráfico de escravos realizado pelos árabes venha ser combatido com
êxito, mas não há nenhuma razão para atrasar o levante contra o comércio
inter-tribal.
O Congo Free State deu um passo na
direcção certa instalando próximo à Stanley Falls um acampamento com trincheiras,
com o objectivo de formar uma barreira para manter os árabes, com seus bandidos
de Manyema, a leste dessa posição.
Cada país no mundo deve apoiar o CFS a
concretizar esse objectivo, pois isso representará o papel mais importante na
história da África Central. Quando Stanley deixou Wadelai, os mahdistas
(africanos islâmicos) já estavam por lá. Se essas hordas se juntarem com os de
Stanley Falls isso exigirá esforços muito mais enérgicos, para salvar toda a
Bacia do Congo de suas devastações.
Enquanto somos capazes de manter os
árabes ao leste das Cataratas, não devemos perder tempo para iniciar a
erradicação do derramamento de sangue existente ao oeste daquele ponto. É um
trabalho enorme, mas é uma dívida que o mundo civilizado tem para com o escravo
indefeso. Embora seja um selvagem, é um ser humano. Deve ser sempre
lembrado que a supressão da escravidão na África não significa apenas combater
os grilhões dos membros do escravo; a substituição do trabalho forçado pelo
pagamento não é seu único objectivo, mas também o alívio, da humanidade
escravizada em todas essas regiões, duma vida de horror indescritível, de
torturas que só o Africano selvagem pode inventar, e duma morte certa e
violenta.
Desde Banana Point até Stanley Pool a
escravidão realmente existe, mas com um carácter mais brando que, quando as
operações realmente começarem, Stanley Pool deve ser o ponto de partida. Se
meia dúzia de barcos rápidos forem colocados no rio em Stanley Pool, cada um
armado com vinte soldados negros, treinados e comandados por dois ou três
europeus que tenham comprovados por seus serviços passados que são capazes de
lidar com a questão, e se tal força tiver o reconhecimento dos poderes
civilizados e for autorizado a combater o mal, milhares de vidas humanas serão
salvas.
Estes barcos estariam constantemente a
mover-se pelo rio, os que estão no
comando começariam por fazer um estudo cuidadoso da política local. Teriam de
convencer os nativos da sua determinação em impedir essas cerimónias diabólicas
de derramamento de sangue. Os nativos devem ser advertidos de que as aldeias
que, no futuro, sejam consideradas culpadas de realizarem tais cerimónias,
serão muito severamente punidas.
Alguns dos chefes nativos com melhor
predisposição teriam suas cabeças feitas para apoiarem o lado do homem branco.
Espiões devem ser contratados em todos os distritos, de modo que um barco ao
chegar a um porto imediatamente sua tripulação ouvirá se alguma execução esta
prestes a ocorrer ou já ocorreu, e eu gostaria de sugerir que qualquer aldeia
que continuasse com esses actos de crueldade, depois de ter sido legalmente
advertida, deverá ser atacada, e um forte exemplo seria feito aos principais
infractores. As punições logo teria um efeito muito salutar. Estas operações recomendaria a se realizarem entre Stanley Pool e as cataratas. Postos de
observações também devem ser estabelecidos em posições estratégicas para
controlar os pontais dos rios usados pelos caçadores de escravos.
Cada ponto deve ser suprido com um
barco, igual ao que recomendei para o baixo rio. Outras estações devem ser
estabelecidas no centro do distrito que praticar o raide escravo. Escravos
encontrados nos mercados poderão ser resgatados e colocados num assentamento,
onde podem ser treinados como soldados
ou aprender algum ofício útil; Tenho comprado, sempre que possível, o resgate
de escravos. a conclusão da compra, sempre tive a precaução de colocar nas mãos
do homem libertado uma declaração afirmando sua liberdade resgatada por mim, e
que a expedição que representei fará um determinado pagamento mensal, enquanto
ele permanecer a seu serviço.
EFEITO
DA LIBERTAÇÃO.
Foi curioso observar os diferentes
efeitos que o anúncio da redenção teve nos escravos libertados de forma tão
inesperada. Como regra, o homem perplexo fazia todos os tipos de perguntas a
cada um dos homens da tripulação do meu barco, qual seria o significado da cerimónia! Qual seria
o seu destino? Seria trocado por marfim?
Ou seria comido? Levei algum tempo e paciência para explicar! Passado algum
tempo o susto passou da primeira surpresa. A importância do papel que e tinha
foi colocado na sua mão.
Outros, mais inteligentes,
imediatamente compreenderam a sorte que tiveram; era estranho ver a mudança surpreendente na
expressão de seus rostos, num momento antes nada indicava, a não ser uma
submissão sem resistência ao seu destino miserável, seus corpos inertes e cansados. De repente
parecia ao mesmo tempo tornarem-se erectos e vigorosos, quando libertados
daqueles degradantes grilhões.
Depois de comprarmos todos os escravos
que estiverem expostos para venda, uma advertência foi feita, Alertou-se que
qualquer tentativa de compra de seres humanos para escravidão seria considerada
um sinal de guerra, que os compradores
seriam severamente punidos.
O mais importante do movimento é
convencer os escravos na nossa seriedade e sinceridade. Sinto-me confiante que as
operações executadas da maneira como sugerimos, teríamos mais resultados
satisfatórios.
A razão para o facto das aldeias
nativas serem desunidas é que, raramente aparece um chefe suficientemente forte
para liderar uma união. Esta fraqueza deve ser aproveitada, incumbindo
competentes homens brancos para liderá-los, e através da sua influência
pessoal, unir as tribos sob sua liderança.
Mais cedo ou mais tarde teremos que
combater os árabes em Stanley Falls. Actualmente, permanecem por lá não porque os homens brancos não lhes
permitam descer o rio, mas porque estão no centro dum campo rico, sabem que,
descendo o rio devem confiar inteiramente nas suas canoas, as estradas no
interior são poucas e distantes entre si, devido à natureza pantanosa do
terreno. Também teriam pela frente os populosos e belicosos distritos de Upoto,
Mobeka e Bangala para lutar contra, o que não seria tão fácil de superar como
são as pequenas aldeias espalhadas ao redor de Stanley Falls, que no momento
são frequentemente perseguidas.
Todos os nativos do Alto Congo, até os
actuais limites sob a influência dos árabes, devem ser controlados tanto quanto
possível por europeus. Devem permanecer alinhados com os europeus, de modo que
quando chegar o momento dos árabes decidirem avançar rumo ao Oeste, encontrarão
nas suas fronteiras uma barreira de nativos bem armados e decididos. O comércio
de escravos de hoje é quase totalmente confinado à África. Os escravos são
capturados e eliminados no próprio continente,
o número daqueles que são enviados para a Turquia e outras partes é
realmente pequeno em comparação com o enorme tráfego exercido no interior. Nós
temos a autoridade de Stanley e Livingstone e outros exploradores a cuidar da
iniquidade existente na porção Oriental da África Equatorial.
Na Índia temos um exemplo daquilo que
a determinação e resolução podem realizar, como as cerimónias desumanas do
sati, carro de Juggernaut, o infanticídio, e a sociedade secreta dos Bandidos
foram todas reprimidas pelo governo britânico. As oportunidades para alcançar o
centro da África estão anualmente a melhorar.
Desde que Stanley expôs pela primeira
vez ao mundo a história manchada de sangue do Continente Negro, rápidos avanços
foram feitos na abertura daquele país. O trabalho para o bem estar da África,
tão determinadamente perseguido por Livingstone, foi agora mais nobremente
realizado por Stanley, e o rápido progresso que está actualmente acontecendo é
inteiramente devido aos esforços de Stanley. Um grande obstáculo sempre existiu
entre o mundo exterior e a África Central, no trecho de águas não navegáveis
entre Matadi e Stanley Pool. A ferrovia que está a ser construída agora vai
superar esta dificuldade.
E, J. Glave
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