Por: Maria Emília Madeira Santos*
Investigadora-Coordenadora. Directora do Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga.
Janus
1998
A cartografia portuguesa exprime, a seu modo, a visão do Mundo que os portugueses foram produzindo ao longo da sua história e, em particular, ao longo da saga dos Descobrimentos. Sobretudo no séc. XVI, a cartografia para uso dos europeus exige know how e tecnologia em que os portugueses são mestres. Os cartógrafos de Portugal são disputados pelas potências europeias que rivalizam entre si na tentativa de aceder às novas rotas, novas riquezas, novos mundos.
A cartografia portuguesa exprime, a seu modo, a visão do Mundo que os portugueses foram produzindo ao longo da sua história e, em particular, ao longo da saga dos Descobrimentos. Sobretudo no séc. XVI, a cartografia para uso dos europeus exige know how e tecnologia em que os portugueses são mestres. Os cartógrafos de Portugal são disputados pelas potências europeias que rivalizam entre si na tentativa de aceder às novas rotas, novas riquezas, novos mundos.
Estas
páginas introdutórias do JANUS 98 sugerem, de forma sintética, a aventura cartográfica
e o que ela exprimiu.
Infografia
Os
"mapas TO", mapas-mundi característicos da baixa Idade Média,
representam esquematicamente a imagem do mundo que se tinha na Europa da
civilização cristã. O “O” representa a terra redonda, plana, rodeada de mar por
todos os lados. No “T”, o traço horizontal é o Mediterrâneo — área central do
mundo medieval, como do clássico. O vertical corresponderia à separação entre
África e Ásia. Os "TO" mais ricamente decorados, pertença das
instituições eclesiásticas mais abastadas, apresentam, nas áreas menos conhecidas,
uma iconografia muito próxima do maravilhoso, onde se sucedem figuras
mitológicas e monstros semi-humanos. Jerusalém encontrava-se sempre no centro
do mundo. A localização do Paraíso, sempre algures para o lado oriental. A
época dos "TO" é também a dos "livros de maravilhas".
Cortes
como a de Aragão cultivavam não só a cartografia, mas também uma literatura
inspirada em narrativas de aventureiros, comerciantes, viajantes, peregrinos.
O
mapa-mundi de Ptolomeu, geógrafo romano do séc. II d.C. só se torna conhecido
na Europa cristã através dos árabes. Durante séculos, o isolamento cristão
tinha tido os seus reflexos na visão do mundo, produzindo um retrocesso nas
formas de conhecimento. Nas últimas décadas do séc. XV, a cultura europeia
recupera uma imagem da terra vinda dos clássicos, mas que não importara
directamente. Antes de conhecerem a Geografia de Ptolomeu, porém, já os
portugueses estavam a descer a costa ocidental africana. As sucessivas edições
da Geografia de Ptolomeu vão recebendo influências das novas descobertas. Nesta
versão, a África é ainda desenhada com a sua extremidade oriental prolongada
até ao extremo da Ásia; o oceano Índico apresenta-se como um mar fechado. Para
esta visão do mundo, o périplo de África nunca poderia ser viabilizado — a Ásia
nunca seria atingida através do Atlântico. Ptolomeu e Pompónio Mela (seu
contemporâneo), entre outros, transmitiam a ideia de que, devido à geografia
física, ou a razões climáticas, a navegação para sul das zonas equatoriais
seria impossível. Contra esta ideia navegavam os portugueses, que queriam
descer o Atlântico Sul. Uma nota importante: na Geografia de Ptolomeu, as
nascentes do Nilo têm uma representação muito próxima da realidade, o que
significa que os romanos do séc. II dispunham de informações precisas só
confirmadas, no séc. XIX, por exploradores científicos que sucessivamente
visitaram o território para conhecer a complexa hidrografia da região.
O mapa de Martellus,
cartógrafo germânico, demonstra conhecimento de toda a descida da costa ocidental
africana pela navegação portuguesa. Estava desfeito o mito do "mar que
fervia" na região equatorial, desenhado o Golfo da Guiné e, muito mais
importante, confirmada a passagem entre o Atlântico e o Índico. Com o périplo
da África garantido pela viagem de Bartolomeu Dias em 1487-88, os portugueses
estabeleciam o acesso, pelo Atlântico, às fontes das especiarias. O mapa de
Martellus é claramente feito "em cima do acontecimento". O extremo
sul de África ultrapassa a latitude sul máxima prevista inicialmente pelo
cartógrafo, e "morde" a margem inferior do desenho. A expedição de
Bartolomeu Dias era parte de um projecto mais vasto de D. João II, que incluiu
a de Pêro da Covilhã através do Mediterrâneo e do mar Vermelho em demanda do
Preste João e das especiarias. Pêro da Covilhã atinge a Índia, chega a descer a
costa oriental africana até Sofala e, voltando a subir a costa, chega a Zeila
em 1492: em terras da Etiópia/Abissínia encontra finalmente o Preste João, que,
naturalmente, ninguém na região conhecia por tal nome.
O mapa-mundi dito de Cantino de 1502
resulta de um trabalho de espionagem ao serviço de um financeiro italiano. De
Lisboa, os espiões enviavam regularmente relatórios sobre os progressos dos
portugueses no estabelecimento dos novos acessos às especiarias. Cantino
conseguiu subornar um cartógrafo dos Armazéns da Casa da Mina e índia, cujas
cartas estavam sujeitas a regras de reserva muito rigorosas. O "mapa de
Cantino" foi enviado ao financeiro em 1502, e constituiu sem dúvida o mais
completo e esclarecedor "relatório" do espião. O original está
ricamente decorado (trata-se, portanto, de uma carta para oferta). É a primeira
vez que o Brasil surge representado (para norte dele as informações provêm de
Colombo). O Oriente é definitivamente representado, em parte com base em
informações de pilotos árabes. O golfo Pérsico é ainda ptolomaico, mostrando um
ainda fraco conhecimento da região. A representação mais surpreendente é a de
África, muito próxima de realidade, sobretudo no tocante à longitude, muito
difícil de medir correctamente na época. De acordo com o método experimental,
que caracterizava a cartografia portuguesa, as nascentes ptolomaicas do Nilo,
sobre as quais não se dispunha de informações directas, desaparecem. A
decoração mostra um Castelo da Mina realista, uma representação imaginária da
serra Leoa, a marca da cristianização do Congo e um conhecimento directo das
montanhas do extremo-sul de África.
O
mapa-mundi de Diogo Ribeiro, de 1525, é a primeira carta da circum-navegação do
mundo, incluindo o contorno do extremo sul do continente americano e o estreito
de Magalhães (cujos navios tinham regressado em 1521). Diogo Ribeiro,
cosmógrafo, cartógrafo e fabricante de engenhos náuticos, além de profundo
conhecedor da construção naval, é um português ao serviço do rei de Espanha
(terá sido contratado em 1523 pela Casa da Contratação de Sevilha) e recebe em
primeira mão as novas informações dos expedicionários. A época de Diogo Ribeiro
é o período áureo da cartografia portuguesa na Europa: só os cartógrafos
portugueses dispunham da informação e da técnica necessárias para a concepção
rigorosa destas cartas.
Um segundo mapa-mundi de Diogo Ribeiro, de
1529, mostra o progresso da exploração da costa ocidental sul-americana, quer a
partir de norte quer de sul, tendente a fechar o “Novo Mundo”.
O
Oriente de Lopo-Homem — Reineis, de 1519, apenas uma das folhas de um Atlas,
mostra o excepcional nível de especialização das escolas familiares de
cartógrafos portugueses (no caso, as famílias Homem e Reinel). Nesta
representação, o golfo Pérsico é já o resultado de levantamentos hidrográficos,
o Ganges e sua embocadura permanecem difíceis de determinar e a representação
das ilhas é ainda esquemática. Lopo-Homem deu origem a uma dinastia de cartógrafos
disputados pelas casas reais europeias mais empenhadas no contacto com as novas
terras. O mais activo é o seu filho Diogo-Homem, cuja produção se estende entre
1557 e 1576 e que foi um genuíno free lancer, dispensando os seus serviços a
Veneza, Londres, Paris. A vida aventurosa de Diogo, penteada por condenações,
dívidas, fugas, não o impediu de ser devidamente apreciado pela coroa
portuguesa, que insistentemente tentou negociar com ele, sem sucesso, o
regresso a Lisboa. Diogo serviu também, no entanto, os interesses do seu país:
em Paris, por exemplo, obteve via Veneza informações militares sobre o Oriente
que transmitiu ao embaixador português na cidade francesa — o qual, por sua
vez, as enviou para Portugal.
No Planisfério de Lopo-Homem.
Note-se particularmente a relevância especial do continente Antárctico, então
minimamente conhecido. A Antárctica foi, como se sabe, o último continente a
ser explorado pelo homem, em épocas muito mais próximas de nós.
O "Theatrum Mundi"
de João Baptista Lavanha (cartógrafo, cosmógrafo e homem de letras) e Luís
Teixeira, de 1597 e 1612, é a visão do mundo a que se chega no final do séc.
XVI. Como no Planisfério de Lopo-Homem, mantém-se a hipertrofia da Antárctida.
A hidrografia da América do Sul fez grandes progressos, embora se mantenha a
ideia de um grande lago interior. Na África regressa a
representação ptolomaica das nascentes do Nilo e o continente estreita-se nas
longitudes, perdendo-se assim a representação mais realista de Cantino. Este
"emagrecimento" tinha origem em informações locais, que tendiam a
diminuir a distância entre as duas costas, instigando a uma travessia há muito
desejada. Português, Lavanha trabalhou em Lisboa, Madrid e Valladolid para a
corte de Felipe II, rei das coroas portuguesa e castelhana.
Em meados do séc. XIX, a
concepção das possessões portuguesas na África Austral abrangia toda a faixa do
continente entre a costa de Angola e a costa de Moçambique. Não havia ainda
concorrentes europeus directos que ameaçassem as pretensões portuguesas nesta
zona, mas os "boers" já se dirigiam claramente, a partir do Cabo,
para as áreas ao sul de Angola. O mapa do Marquês de Sá da Bandeira — ministro
da Marinha e Ultramar — de 1863 exprime a vontade de definir cartograficamente
as áreas consideradas sob soberania portuguesa, quer a partir de Angola, quer
de Moçambique. De Angola partiam vários caminhos em direcção aos mercados da
África Central (Lunda, Barotze, etc.). Depreende-se que a margem direita do
mapa, próxima do meridiano 20, seja o "limite da possessão
portuguesa". Mas torna-se perfeitamente claro que as relações com os povos
do interior são intensas e variadas.
O Mapa-cor-de-rosa, de 1886,
reflecte o imaginário do império africano português, mostra as ambições
políticas e denuncia as convulsões impostas às formações políticas africanas.
Ousa cartografar a "África Meridional Portuguesa" como sendo a
Província Angolo-moçambicana de costa a costa. O Estado português está a
transferir para a área de soberania nacional contactos comerciais estabelecidos
desde há muito — o que, efectivamente, nunca se verificara in loco. Lisboa
deturpa, em 1886, o que Sá da Bandeira sabia em 63: influenciados pelas
negociações diplomáticas da Conferência de Berlim, os políticos de Lisboa vivem
a vertigem da política de ocupação efectiva, resultante de um novo direito
colonial internacional. O Mapa-cor-de-rosa foi um equívoco diplomático, uma
desconexão entre os homens no terreno em África e os políticos do Terreiro do
Paço: não haveria condições políticas nem geográficas para resistir ao ultimato
da Inglaterra em 1890. Os portugueses diziam que a Inglaterra queria
"meter o Rossio na Rua da Betesga", referindo-se ao império português
na África Austral, comprimido pela cunha do domínio inglês, que o atravessava
na realização do projecto britânico do Cabo ao Cairo.
Uma
representação de menor interesse cartográfico, mas de grande interesse
político, é a que perdura numa das salas da Sociedade de Geografia de Lisboa:
nascida em pleno Estado Novo, ela fixa, a partir do desenho electrificado das
explorações dos navegadores de Quinhentos, a vocação transcontinental do
Império. É a expressão máxima do "Mundo Português" tal como a
Exposição Internacional de Lisboa o celebrava em 1940. Numa Europa parcialmente
às escuras devido aos ataques aéreos nocturnos, Lisboa, oficialmente neutral,
apresentava a refugiados, diplomatas e espiões o esplendor das suas luzes
ribeirinhas.
Fonte:
Fonte:
https://www.publico.pt/2018/09/24/ciencia/ensaio/pedro-nunes-e-a-distancia-de-lisboa-a-india-1844698
Em 1547,
Pedro Nunes foi nomeado cosmógrafo-mor do reino, tornando-se responsável pelo
padrão cartográfico oficial. Teve então a oportunidade de corrigir o que
considerava ser um erro grave no desenho das cartas.
JOAQUIM ALVES GASPAR
24 de
Setembro de 2018, 7:50
Planisfério de Lopo Homem (1554), em que a distância
longitudinal entre Lisboa e a Índia aparece ligeiramente encurtada
relativamente à cartografia anterior (Instituto e Museu de História da Ciência,
Florença)
Por volta de 1560, numa nota dirigida ao rei de Portugal, o
cartógrafo português Lopo Homem queixa-se asperamente do novo padrão
cartográfico oficial, o Padrão
del Rei, que tinha sido instituído pelo cosmógrafo-mor, o
matemático Pedro Nunes.
O Padrão
del Rei era o modelo no qual todas as cartas náuticas
utilizadas pelos pilotos ao serviço da coroa se deveriam basear.
Segundo Lopo Homem, o novo padrão tinha sido
preparado utilizando os eclipses do Sol e da Lua para determinar as longitudes
dos lugares, mostrando que as distâncias reais de Lisboa à Índia, e também às
Ilhas Molucas, eram muito menores do que as representadas nas cartas náuticas.
No entanto, e de acordo com o seu testemunho, “todas cartas que por este padrão
depois se fizeram […] são muito desvairadas de toda a verdade e ciência de
navegar, e em todas as armadas que foram à Índia se fizeram e aconteceram muito
maus recados e más viagens em o navegar por elas e se perderam muitas
naus das armadas del rei … E por isto forçados mandam los pilotos e navegantes
fazerem suas cartas … a Castela”.
África no planisfério de Cantino (1502), à esquerda, e no
planisfério de Lopo Homem (1554), à direita, comparado com o contorno retirado
de um mapa moderno (linha preta)
Na época em que esta nota foi escrita, os pilotos sabiam perfeitamente
que a distância entre Lisboa e a Índia medida nas cartas náuticas estava
exagerada. Pedro Nunes já se tinha queixado desse facto cerca de vinte anos
antes, no seu Tratado
em Defesa da Carta de Marear (1537), atribuindo-o à
incompetência dos pilotos, “os quais lançam a direito tudo o que passaram por
tantos rodeios, dos quais não podem fugir”.
Embora Pedro Nunes estivesse
certo quanto à exagerada distância longitudinal entre Lisboa e a Índia, não
tinha razão em atribuí-la à incompetência dos pilotos.
Em 1547, foi nomeado cosmógrafo-mor do reino,
tornando-se responsável pelo padrão cartográfico oficial.
Teve então a
oportunidade de corrigir o que considerava ser um erro grave no desenho das
cartas. E assim o fez, começando por mandar fazer observações astronómicas em
Diu, a fim de determinar a sua longitude.
O resultado foi um novo padrão em que a distância
longitudinal entre Lisboa e a Índia aparece ligeiramente encurtada, tal como
num planisfério do mesmo Lopo Homem, desenhado em 1554.
Uma redução mais
drástica, e mais próxima da realidade, teria sido obtida se as observações
mandadas fazer por Nunes tivessem melhor qualidade. No entanto, a determinação
da longitude através de observações astronómicas estava ainda sujeita, naquela
época, a erros consideráveis.
Voltando às queixas de Lopo Homem, por que razão
considerava o cartógrafo que as cartas feitas segundo o padrão de Nunes “eram
muito desvairadas de toda a verdade e ciência de navegar”? Isto é, que tipo de erros
poderia torná-las incompatíveis com as boas práticas de navegação? Certamente
não se trataria das distâncias entre os lugares medidas sobre as cartas – em
particular, entre Lisboa e a Índia – as quais não eram geralmente de fiar.O problema estava na
orientação das linhas de costa, particularmente da costa africana, que já não
estava de acordo com as indicações da agulha de marear. Por outras palavras, o
novo padrão tinha deixado de respeitar a concordância entre as direcções representadas
nas cartas e as que eram medidas pelos pilotos a bordo, uma discordância
absolutamente crítica para a segurança da navegação – muito mais do que os
erros nas distâncias.